Walter Boechat – NISE DA SILVEIRA, OU A LIBERTAÇÃO DAS MÃOS
Os aspectos históricos da psicopatologia são importantes para entendermos a própria psicopatologia em dias atuais de uma forma mais aprofundada. Podemos também compreender melhor as contribuições de Jung para a psicopatologia dentro de um contexto histórico. Percorreremos também nesse artigo algumas contribuições de Nise da Silveira e as relações de seu trabalho com a obra de Jung.
Vamos tentar sistematizar a história da loucura dentro da crise dos paradigmas e o papel de Jung dentro da mudança paradigmática. São três os momentos históricos que iremos considerar: a idade média, o paradigma da modernidade e o paradigma da complexidade (Morin).
Consideremos primeiramente o período medieval:
Foucault encontrou na lepra uma precursora da loucura. (Foucault, 1997, cap. 1). Explico melhor: a lepra é doença de origem oriental, introduzida na Europa pelos cruzados. A contínua migração dos exércitos cristãos vinda de terras do leste trouxe uma doença desconhecida e incurável. O caráter incurável e misterioso da lepra fez com que a doença fosse cercada de mistério e medo. Os pacientes começaram a ser isolados em locais depois denominados leprosários. Durante esse o período da cristandade mais de 19000 desses locais de isolamento foram construídos em toda a Europa.
Foi um fenômeno apenas natural que conteúdos mágico-religiosos fossem associados à lepra devido ao seu caráter desconhecido. Quando uma doença tem uma etiologia mais ou menos conhecida, um curso previsível e mesmo um tratamento possível ela cai naturalmente no domínio médico. Caso contrário, ela permanece no domínio mágico-religioso, sendo vista como castigo dos deuses e punição divina.
A o caráter terrível e misterioso na lepra aparece em inúmeros relatos do mundo antigo. Já no antigo testamento, há o episódio de Moisés que se apaixona pela filha de Jethro, um pastor do deserto. Miriam, a irmã de Moisés, é tomada por ciúmes e é castigada por Jeová, apresentando então manchas brancas pela pele. Essas manchas, punição divina a Míriam por sua falta, são interpretadas por alguns como a lepra.[1] Já nesses antigos relatos a lepra aparece como punição divina. Um grande milagre de Jesus é descrito como a cura do leproso. Em um quadro de Peter Bruegel, leprosos são afastados da cruz, o que denuncia o aspecto pecaminoso e proibitivo da lepra já nos tempos antigos.
A lepra, doença desconhecida, nunca antes vista, provocando deformações corporais, começa pelo órgão corporal fundamental no relacionamento inter-pessoal e da Persona, a pele. O tratamento criado para combatê-la, o único possível, foi o isolamento em enormes leprosários. Com o correr do tempo sua incidência diminuiu muito, pelo próprio isolamento das pessoas e pelo final das cruzadas a partir do século XIII até o século XV. No século seguinte os leprosários passaram a ser ocupados por pacientes vítimas de doenças venéreas, outro tipo de doença que a princípio, partilhou das características da lepra de origem e tratamento desconhecido. Mas essa passagem ocorreu por pouco tempo. As doenças venéreas logo passaram ao domínio médico com a introdução pelos árabes do uso do mercúrio como elemento antisséptico nas infecções em geral.
A verdadeira doença que tomou o lugar da lepra nos leprosários medievais foi de fato a loucura (Foucault, op. Cit.). A loucura partilhava das características básicas da antiga lepra, a etiologia desconhecida, seu curso misterioso e muitas vezes imprevisível, seu prognóstico desconhecido. E o único tratamento possível para a loucura foi então, o mesmo para a lepra, o isolamento. Esse é um dos temas que domina a loucura até o mundo contemporâneo e exige a maior atenção no psicopatologia atual: o binômio isolamento- integração, tema sobre o qual nos vamos estender mais logo abaixo.
O fenômeno da loucura povoou o imaginário cultural em tempos medievais e da renascença. O quadro de Hieronymus Bosch, A Nau dos Loucos de 1490- 1500, [2] faz parte desse imaginário (figura 01).
Figura 01- Bosch, A Nau dos Loucos, 1490-1500. Óleo sobre madeira.
Esse quadro se tornou um dos mais conhecidos do autor e retrata um costume bastante comum nas cidades da Renânia e Flandres. Pacientes com distúrbios psiquiátricos eram colocados em barcos, exilados nos rios e enviados para outros locais distantes de seus povoados. Este é um importante fenômeno de isolamento da loucura, de não integração e marginalização. A idéia é o envio da loucura para fora da comunidade, um ritual de limpeza psíquica. O ritual tem verdadeiros elementos mítico-arquetípicos, a água, o barco. A água é elemento mítico da loucura, o elemento de Dioniso, o úmido, o que tem manifestação nas águas, Jasão e os Argonautas, que viajam no barco Argo a terra distante para buscar a bruxa , senhora da loucura. O episódio de Ulisses e as sereias do mar, a saga alemã do marinheiro chamado O Holandês Errante e muitos outros. O barco de Caronte, que leva as almas dos mortos pelo rio infernal Estige é também uma associação importante, entre diversas outras. O tema histórico da Nau dos Loucos, Narrenschift, é histórico e também simbólico, importante para o inconsciente cultural da época medieval, mas também para o inconsciente coletivo e a sociedade de agora. É um tema de marginalização e preconceito, embora também de fascinação e curiosidade. Um tema arquetípico retomado de forma genial pelo gravurista brasileiro contemporâneo, Marcelo Grassman, em suas gravuras em metal bastante conhecidas (Figura 02).
Figura 02 Marcelo Grassmann (1920- 2013) S/d. s/ título. Gravura sobre metal.
O paradigma da modernidade trouxe importante modificação ao status da loucura na sociedade. À época medieval, muitos dos queimados vivos como bruxos e possuídos pelo demônio, em sua maioria mulheres, eram psicóticos, histéricos graves ou apresentavam algum tipo de doença mental. Como não havia ainda uma nosologia psiquiatria, uma nomina médica, estas pessoas caíram vítima da nomina religiosa, visto que o desconhecido precisa ser nomeado. Como diz o conceito antigo: nomina est numen, “o nome é poder”. Quando o desconhecido se aproxima da consciência, ele deve ser apropriado pela consciência por alguma forma de conhecimento. No caso, o único conhecimento disponível era o religioso. Com o advento do iluminismo e mais tarde, de uma psicopatologia sistematizada, a nomina religiosa foi substituída pela nomina medica, pelas classificações psiquiátricas, de que uma forma ou de outra, se apropriam do desconhecido e o classificam.
Devemos abrir um parêntese e aqui e nos estendermos um pouco sobre o importante papel da nomina, das classificações para o desenvolvimento da consciência. Para isso usaremos a metáfora do indivíduo que sai de uma floresta e procura descrever sua experiência, de ter visto milhares de plantas de tipos diferentes. Se ele não possui a nomina, os nomes dessas plantas, a floresta será uma massa informe de vegetais pouco conhecida por ele, embora ele tenha estado lá. Quando Linneu procurou a sistematizar o conhecimento científico em classificações do tipo: Philum, família, gênero e espécie, o conhecimento científico passou a ser organizado de forma sistemática, uma aquisição importante para o desenvolvimento da consciência. Essa classificação em tipos ocupa o papel importante também nos dias atuais no diagnóstico das psicopatologias. Não estamos falando aqui do que é denominado de forma pejorativa, o rotular qualquer paciente e amarrá-lo nessa classificação, tolhendo nosso raciocínio clínico. Falamos da importância que a classificação psicodinâmica adquire também no trabalho clínico moderno para, ao contrário, organizar nosso trabalho clínico.
Figura 03: Philippe Pinel libera os loucos em Salpêtrière em 1795.
A figura de Phillipe Pinel é simbólica deste momento no qual a loucura é desidentificada com possessão demoníaca e os loucos são libertados de suas algemas. Essa transição ocorre em finais do século XIX e inícios do século XX. Também nesse momento as classificações e grandes sistematizações estão organizando melhor a psicopatologia. Também Kraeplin e Kraetschmer, com suas classificações nosológicas são figuras importantes nesse momento.
C.G. Jung se forma em medicina em 1900. Logo em seguida entra no hospital psiquiátrico Burghözli de Zurich, lá permanecendo até 1909. Esse é o chamado período psiquiátrico da obra criativa de Jung, sendo um dos mais importantes, quando alicerçou a teoria dos complexos e a base teórica para a teoria do inconsciente coletivo. Devemos lembrar que a demonstração por Jung de um modelo empírico para entender inconsciente, o modelo do arquétipo, é constituído pela observação da esquizofrenia. Jung observou o aparecimento freqüente de mitologemas e elementos religiosos nas produções delirantes dos esquizofrênicos. Para um construto teórico em psicologia, sempre se parte de uma psicopatologia, se a histeria é a psicopatologia da psicanálise,[3] a esquizofrenia é a psicopatologia da psicologia analítica. A psicopatologia está presente na construção das teorias psicopatológicas.
Quando Jung demonstra a presença dos conteúdos religiosos nos delírios, a psicologia analítica recupera a nomina religiosa para a nomina medica, evitando uma dissociação que havia ocorrido pelo racionalismo unilateral do iluminismo. A psicologia analítica proposta por Jung sugere uma abordagem radicalmente simbólica da subjetividade. Evita-se assim, essa dissociação. Pelo símbolo, evitam-se os males opostos: a literalização medieval pura e simples da imagem religiosa, e ao mesmo tempo o racionalismo da modernidade.[4]
A posição de Jung é altamente revolucionária e pertence já a um novo paradigma das ciências, os conceitos psicodinâmicos da loucura como expressão de conteúdos transpessoais do inconsciente coletivo já pertencem a um paradigma da complexidade, que ultrapassa as abordagens do paradigma moderno.
Figura 04: Jung e Nise da Silveira, Congresso Internacional de Psiquiatria,1957.
Nesse contexto seria apenas natural a aproximação de Nise da Silveira da obra de Jung. Desde a década de 1940 Nise da Silveira trabalhou com terapêutica ocupacional para grandes hospitais. Encontrou o chamado louco entregue à sua própria sorte, abandonado nos grandes hospitais públicos. Fundando em 1946 e depois dirigindo a STOR, Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação do Centro Psiquiátrico Pedro II, hoje IMAS (Instituto Municipal de Atendimento à Saúde Nise da Silveira, iniciou o movimento de resgate das mãos. A atividade ocupacional era então considerada uma atividade secundária, e entregue a técnicos de reabilitação, cabendo a palavra final ao psiquiatra, que prescreveria a medicação, a abordagem farmacológica, o diagnóstico e o prognóstico da patologia. Livre de preconceitos, como todos os grandes criadores, Nise demonstrou que a atividade com as mãos continha em si uma sofisticada estratégia terapêutica.
Nise foi sem dúvida a grande introdutora do pensamento de Jung no Brasil. Percebo em seu trabalho as marcas do gênio intuitivo que antecipa os caminhos. Em primeiro lugar, a fundação da Casa das Palmeiras antecipa um modelo de atendimento nosocomial com o hospital-dia ocupando papel importante. Muitos anos depois das idéias revolucionárias de Nise da Silveira, ocorre a reforma institucional do clássico hospital psiquiátrico na qual estão presentes várias de suas idéias e se torna de grande urgência a maior presença do hospital-dia, do assistente social, o terapeuta familiar. Enfim, uma integração social maior ao paciente mental no seu ir e vir à Casa de atendimento de tempo parcial. Tanto na Casa das Palmeiras quanto no então Centro Psiquiátrico Pedro II, Nise operou a importante revolução de revalorização do trabalho ocupacional como atividade terapêutica.
Considero que, pela libertação das mãos com as atividades expressivas e pela libertação do coração com o olhar compassivo, Nise da Silveira tornou-se um novo Phillipe Pinel do século XX. Mas enquanto Pinel libertava os loucos de suas algemas nos hospícios de Paris no século XIX, dando-lhes o status de pacientes psiquiátricos, não de possuídos por demônios, retirando deles a nomina religiosa a qual estavam confinados e conferindo-lhes a nomina medica, Nise da Silveira os liberta desta outra prisão, a prisão diagnóstica, conferindo-lhes o status de pessoas humanas. Talvez este seja o cerne do seu trabalho, em minha opinião. Além disso, fica também demonstrada a eficácia terapêutica das artes expressivas, e que a Terapêutica Ocupacional é uma eficiente estratégia terapêutica para grandes hospitais, como quis Nise da Silveira.
A questão do isolamento da loucura e é claro, do próprio paciente psicótico é central. Ela está presente, como tratamos antes, nos próprios antecedentes históricos dos hospitais psiquiátricos tradicionais, os leprosários.
No domínio da literatura o escritor brasileiro Machado de Assis tratou do assunto com humor e leveza no conto O Alienista.[5] Nele, o Dr. Simão Bacamarte respeitável alienista recém-chegado de formação em Coimbra e Pádua, procura aplicar seus critérios do que é normal ou patológico em sua Itaguai, pequena cidade do interior fluminense em inícios do século passado. Acaba por internar em seu hospital toda a cidade. Por fim, revendo todos os seus conceitos, acaba por colocar todos em liberdade e internando-se a si – próprio… E assim termina essa metáfora de Machado sobre a relatividade do normal e do patológico. Dentro da questão da normalidade e da patologia, a questão do isolamento do louco é enfatizada, problema que muito preocupou Nise Silveira.
Jung, seguindo a abordagem de Bleuler de valorizar o aspecto psicológico da relação com o psicótico, procurou tratá-lo sempre com humanidade e como seres humanos. São conhecidas suas atividades de procurar socializar os pacientes do Burghölzli enfatizando seus aspectos normais, valorizando seu lado humano. Nise da Silveira procurou levar essa humanização do psicótico ao máximo possível abolindo as diferenças do paciente e do profissional da saúde, tratando os pacientes de hóspedes e dando funções e responsabilidades dentro da Instituição compatíveis com cada um.
Nise da Silveira constitui uma das forças pioneiras na mudança paradigmática no tratamento da doença mental. A abordagem da loucura, como também toda a visão de mundo do homem ocidental sofreu o terrível preconceito de que a consciência cortical é a única forma de consciência possível, e de que há o predomínio absoluto da consciência racional sobre qualquer outra forma de conhecimento ou de consciência. Pelo novo paradigma da complexidade (Morin, 2002) a consciência fica libertada de sua tirania cortical, sendo compreendida como estando presente em todo o corpo.
A tirania cortical se instaura no ocidente com ênfase a partir do primado da ciência cartesiana desde o século XVII. Nesta época ocorreu a conhecida justa filosófica entre René Décartes e Espinosa e aparentemente Décartes foi o vitorioso, pelo menos na maioria dos campos do saber. É importante lembrar, entretanto, que em diversos campos da atividade cultural ocidental o moto Espinosano se faz presente, isto é: Deus ou natureza, ou: a natureza é Deus visível e Deus é a natureza invisível. Essa busca de visão unificada do mundo segundo o paradigma de Espinosa se faz presente em diversos campos do saber, a psicologia profunda (psicanálise e psicologia analítica) a homeopatia e a acupuntura entre outros. (Luz, 1988).[6]
Dentro do novo paradigma entendemos todo o corpo, como diria Jung, psiquificado, dotado de psiqué, e portanto, inteligente. Jung, em 1921, já publicara seu livro Tipos psicológicos, e por nele defendia diversos tipos de consciência, e portanto tipos de inteligência, podemos dizer, não só a inteligência cortical, racional, a do pensamento, clássica, medida em nossos testes de QI, mas outras três, principais, uma inteligência afetiva, uma intuitiva e por último uma personalidade ou inteligência sensorial, ou artesanal, diríamos assim. É a esse último tipo de inteligência que quero me deter de modo especial, porque ela repousa nas mãos.
Com o primado da consciência cortical na cultural ocidental, a inteligência das mãos foi esquecida e as mãos, aprisionadas. Nise da Silveira dedicou-se a libertar as mãos de seu aprisionamento. As mãos em nossa cultura industrial foram esquecidas e amarradas, e o ser humano tornou-se um ser puramente cortical. E o louco enlouquece por um excesso de atividade cortical, por um excesso de atividade mental, mergulhado em seu universo de fantasias delirantes.
José Saramago descreveu esse problema com grande beleza em seu romance A Caverna[7]. Nele uma família de artesãos se vê privada de seu ganha-pão, o trabalho artesanal criativo com as mãos com a chegada da indústria do plástico. Os objetos utilitários que criavam até então seriam substituídos por objetos em série artesanais. O trabalho criativo das mãos sendo destruído pelo trabalho robotizado da indústria. Saramago então reflete sobre: “Falange, falanginha e falangeta, a consciência das mãos…” E logo em seguida se estende em como o homem é soberbo em confiar somente na consciência de sua cabeça…
Algumas culturas aborígines julgam que pensam com o abdômen, o centro de consciência estando na barriga. Outras culturas, como a Grécia homérica, enfatizavam o peito como o lócus da consciência, a palavra phrén para diafragma serve também para mente em grego, é o hálito vital, o pneuma ( espírito) é o ar que circula pelos pulmões e a honra do Herói é sua Timé (Timo, no esterno) (Jung, 1976). Portanto, o corpo todo é psiquificado, assim como hoje temos a fantasia do córtex cerebral, mas sabemos já que o corpo todo é consciência, onde há tecido nervoso há consciência, devemos sempre pensar em uma consciência corporal.
As mãos são um dos veículos principais da consciência corporal. A consciência digital foi mesmo mitologizada na figura dos anões do folclore dos mitos e contos. Não é por acaso que os anões dos Niebelungos da mitologia nórdica possuem o anel mágico, e os anões dos contos estão sempre perto do ouro. A consciência manual vem acompanhada da riqueza criativa. Desde aquilo que os franceses gostam de chamar de bricolage, uma brincadeira aparentemente sem sentido, mas ao contrário, com muito sentido, até a mais sofisticada obra de arte, vemos a consciência das mãos em ação, sua criatividade.
Apesar de tudo as mãos encontram-se ainda aprisionadas. Cumpre libertá-las. Estão aprisionadas pela fantasia de que só a palavra basta, de que o logos é o detentor de toda a ratio e de todo o processo criativo e civilizatório. Nos grandes hospitais o trabalho com as mãos teve seus inícios em décadas passadas com a chamada Terapêutica Ocupacional, a T.O. A terapêutica ocupacional era sempre feita por técnicos especializados, mas sempre subordinada ao médico psiquiatra, detentor da palavra final. E a sempre a chamada T.O. teria uma função meramente ocupacional, no sentido quase de ocupar o tempo do paciente psiquiátrico, tirando-o do ócio. Coube a Nise da Silveira o trabalho pioneiro de mostrar o caráter criativo das técnicas expressivas no Brasil. Elas teriam em si mesmas um papel terapêutico bastante sofisticado. Isto porque o psicótico tem atividade cortical em demasia, ele pensa em excesso, desenvolve idéias delirantes e sistemas delirantes complexos. Via de regra tem uma intuição patologicamente desenvolvida, que o afasta da realidade[8]. A atividade com as mãos mobiliza o fluxo da libido para os objetos artesanais produzidos, pelo desenho, pintura, modelagem e jardinagem aliviando a atividade cortical pelo aumento da atividade sensorial.
As mãos estão aprisionadas mesmo nas terapias dos não-psicóticos, nos consultórios. As técnicas expressivas que Nise ajudou a pesquisar são cada vez mais usadas nos consultórios como estratégias terapêuticas auxiliares de exploração do inconsciente e da liberação de complexos defendidos.
Os manuais falam das psicoses esquizofrênicas como produzindo “embotamento afetivo”. Mais uma vez Nise da Silveira irá manter sua postura independente e discordará, dizendo que o esquizofrênico não apresenta um embotamento dos afetos, mas uma dificuldade em manifestá-los devido à introversão psicótica, o que é bastante diferente. A aproximação cuidadosa de seu mundo subjetivo, de suas produções plásticas irá revelar sua fina sensibilidade e seus afetos diferenciados. Nise ainda irá adiante em sua abordagem terapêutica, usando animais, cães e gatos, como elementos facilitadores de acesso ao mundo interno do psicótico, e mesmo plantas, no caso pelo uso da ikebana, a arte floral japonesa como elemento de acesso ao mundo interior do esquizofrênico. É mais fácil para um paciente altamente resistente ao mundo social em aceitar animais e mesmo plantas em sua interação com o mundo. Posteriormente sua libido se conectará com o terapeuta associado ao animal ou planta, em lento processo de conexão afetiva com o mundo externo.[9]
Ainda atenta aos sentimentos e afetos refinados dos pacientes, a quem chamava hóspedes, respeitando-os integramente e radicalmente em sua individualidade, Nise retomou idéias do casal Éugene Minkoswki sobre a Afetividade-contato ou o fenômeno de Retentissment, ou de eco. Assim, os meandros complicadíssimos das demonstrações afetivas dos esquizofrênicos aconteceriam ecoando no meio ambiente, via inconsciente, muito mais do que pela via usual de projeção transferencial do não-psicótico. Estes fenômenos de eco, por vezes bastantes sutis, necessitam ser percebidos, para que o terapeuta saiba responder a eles de forma adequada.
Por ocasião do Congresso Internacional de Psiquiatria em Zurique, em 1957, O Museu de Imagens do Inconsciente teve uma presença marcante com exposição de produções plásticas de seus pacientes tendo sala própria de exposição. Nise teve oportunidade de encontrar-se pessoalmente com C.G.Jung. Jung, na oportunidade, recomendou a Nise que para entender estas imagens profundas, “estudasse os mitos”[10] Isso porque a abordagem mítica traz luz a diversas experiências da loucura que de outra forma não podem ser compreendidas. O mitologemas presentes nos delírios dos psicóticos foram a chave do desenvolvimento do modelo do arquétipo. Isto porque o pensamento racional domina a consciência, o pensamento dirigido, adaptativo, e o pensamento circular, ou mitológico dá a tônica ao inconsciente. É conhecida a entrevista de Jung à rede BBC de Londres na qual ele menciona o exemplo do paciente esquizofrênico que comunica um delírio seu, o do falo solar, que seria a origem dos ventos. O conteúdo deste delírio é o mesmo de um manuscrito encontrado quatro anos depois no Museu de Paris, por Jung. Neste mitologema estaria a gênese da hipótese de Jung do inconsciente coletivo.
Do ponto de vista da teoria dos arquétipos do inconsciente coletivo, pedra angular da teoria junguiana, a criação do Museu de Imagens do Inconsciente é referencial da maior importância para pesquisa. Isso porque nas neuroses o arquétipo está presente, como nos sonhos e nas diversas situações de vida. Mas nas vivências psicóticas as imagens arquetípicas se fazem sentir em toda sua riqueza mitopoética, já que a interferência da consciência é muito pequena.
Procuramos nesse trabalho fazer uma leitura de aspectos gerais da história da loucura e das inserções criativas de C.G.Jung e Nise da Silveira com relação à doença mental. O pensamento de Nise da Silveira e seu papel na libertação das mãos é um trabalho revolucionário de grande criatividade que atualmente está sendo reconhecido em toda sua extensão e importância. No século passado, durante o período de vida de Nise da Silveira, seu trabalho foi mais criticado do que compreendido. O pensamento revolucionário de C.G. Jung fornece as bases teóricas para o trabalho de libertação das mãos pelas técnicas expressivas.
Bibliografia
ASSIS, Machado de- O alienista. In: Obra Completa. Vol.: 2. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962.
Bash, K. (1962) – Psicopatologia general. Madri: Morata.
JUNG, C.G.-(1935) – The tavistock lectures. O.C. vol. 18, Princeton: Princeton University Press, 1976.
JUNG, C.G.(1921) Psychological types. O.C. vol.6, Princeton: Princeton University Press, 1974.
FOUCAULT, M.- História da Loucura. S. Paulo: Perspectiva, 1997. 5ª Ed.
LUZ, M.- Natural, racional, social. Razón Médica y racionalidad científica moderna. Buenos Aires: Lugar Editorial, 1997.
MORIN, E.- A religação dos saberes. O desafio do século xxi. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002. 2ª ed.
Saramago, J. A caverna, S. Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[1] O episódio de Moisés e Jethro é interpretado por Jung em sua obra Aion, O.C. Vol. 9/2, como exemplo de estruturação da relação anima-animus.
[2] As referências à Nau dos Loucos em Foucault, Op. Cit., cap. 1, Stultifera Navis.
[3] Quando dizemos que a histeria é a psicopatologia da psicanálise, estamos conscientes que Freud pesquisou de forma dinâmica outras formas do adoecer. (O caso Schreber é apenas um exemplo entre outros diversos). Mas assim como Jung estudou a esquizofrenia no Burghölzli sob a direção de Bleuler e isso foi fundamental para a sua descoberta dos conteúdos mitológicos (arquetípicos) dos delírios, assim os estudos de Freud no Hospital Sapetrière sob a direção de Charcot sobre a histeria foram a pedra fundamental para a sua teoria do recalque e do complexo de Édipo.
[4] Em sua autobiografia Jung menciona que percebeu que o mito de sua vida seria aproximar ciência de religião. Isso ocorre quando discorre sobre os conflitos de seu pai com a religião. Sendo pastor, pregava um Deus no qual não acreditava. Com o construto da psicologia analítica, religião e ciência foram integrados em certa medida: as imagens religiosas são mitologemas, conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo.
[5] É significativo o fato de que o próprio nome para o especialista em doença mental no passado, alienista, pressupunha alienação e isolamento, social, da patologia. Enfatiza-se assim a polarização normal-patológico.
[6] Madel Luz discute a questão da formação da racionalidade na modernidade no capítulo 2 de seu livro, Natural, Racional, Social.
[7] Saramago, J. A caverna, S. Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[8] A noção de intuição patológica foi desenvolvida pelo junguiano suíço K. Bash em Psicopatologia general. Madri: Morata, 1962.
[9] A “Terapia Com o auxílio de Animais de Estimação”ou Pet facilitated psychotherapy, que Nise da Silveira procurou introduzir nos grandes hospitais brasileiros é realizada com sucesso em alguns poucos hospitais dos Estados Unidos e da Europa.
[10] Silveira, N.- Comunicação pessoal.
Walter Boechat
Possui graduação em Escola Médica do Rio de Janeiro pela Universidade Gama Filho (1973), Diplomado pelo C G Jung Institut Zurich – Universitat Zurich (1979) e Doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2004). Membro do Executive Committee (Diretoria) da International Association for Analytical Psychology (Zurique, Suíça) no período de 2007 a 2013. Atua como Professor colaborador no NUBEA – Núcleo de Bioética e Ética Aplicada – da UFRJ. É membro-fundador da Associação Junguiana do Brasil. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento Arquetípico da Personalidade, atuando principalmente nos seguintes temas: símbolos arquetípicos, inconsciente e imagem, interações entre indivíduo e cultura; inconsciente cultural, complexos culturais. Totalidade corpo-mente. o corpo na clínica psicanalítica junguiana.