Théodore Flournoy – DA ÍNDIA AO PLANETA MARTE: Um caso de personalidade múltipla com linguagem imaginária. Tradução de Telma Ripoll Becker
INTRODUÇÃO
Encontrando Hélène
Théodore Flournoy e a Genesis da Psicologia Subliminar
Sonu Shamdasani
OS MÉDIUNS ENTRAM EM CENA
Nas sessões espíritas do fim de século, mulheres viravam homens e homens viravam mulheres. Não havia limites quanto a quem um indivíduo poderia ser ou em quantos indivíduos se desdobrar. Terrestres e extraterrestres assumiam o lugar uns dos outros, assim como se trocavam mensagens. Platão e Sócrates retornaram para oferecer cursos de dialética post-mortem. Os falecidos voltavam para refazer suas juras de amor ou continuar suas intrigas. Evidentemente, havia um ar teatral e macabro à cerca desses espíritos, isso sem falar na predileção pelo humor negro. Convenções linguísticas e estéticas foram quebradas, preparando o terreno para futuras convulsões artísticas. Dogmas religiosos caíam por terra, à medida que novas crenças se apresentavam. Antes do advento das telecomunicações, os médiuns foram os operadores telepáticos de comunicação transatlântica, conectando linhas partidas entre os vivos e os mortos. Mesmo então, as linhas se congestionavam. Tempo e espaço se encontravam em novas formas e combinações jamais vistas. Filósofos ponderavam sobre os efeitos desses golpes, nas estruturas de uma filosofia enfraquecida. Esses efeitos se faziam sentir indiretamente até mesmo nos consultórios de psicoterapia, pois qualquer atuação falada ou escrita sobrepujava de todo a busca por terapia. Não havia qualquer anseio por sair do transe, e por um tempo, a psicologia ficou bloqueada.
A PSICOLOGIA NA SESSÃO ESPÍRITA
Ao final do século dezenove, muitos dos psicólogos de vanguarda, tais como Freud, Ferenczi, Bleuler, James, Myers, Janet, Bergson, Stanley Hall, Schrenck-Notzing, Moll, Dessoir, Richet e Flournoy, frequentavam médiuns. Hoje em dia, fica difícil de acreditar que algumas das questões mais cruciais da “nova” psicologia foram atuadas em sessões espíritas, e o quanto tais personalidades se deixavam fascinar pelos espíritos. O que se passava nas sessões espíritas, entranhou as mentes arrojadas da época, interferindo de modo significativo na psicologia, linguística, filosofia, psicanálise, literatura e pintura do século vinte, isso sem falar na pesquisa física. Por um tempo, assuntos cruciais relativos a essas disciplinas acabaram por desgastar-se no arrebatamento de transes mediúnicos. Uma inversão de valores também aconteceu. Dentre os tantos textos que nos falam desse encontro entre psicologia e sessões, há um admirável, surgido no final de 1899 e que merece destaque. Trata-se de um livro de título insólito, Da Índia ao Planeta Marte: um Estudo de Caso de Sonambulismo com Glossolalia, e que trata do encontro improvável de dois protagonistas e o “ romance sublimiar” que os envolveu. Ela era Èlise Muller, balconista, também Marie Antoinette, e Princesa Simandini, e um visitante regular de Marte. A partir da visão do visitante de Marte, tornou-se Hélène Smith, imortalizada como um caso de personalidade múltipla. Ele era Théodore Flournoy, psicólogo e cientista, que a partir do olhar dela se tornou seu primeiro amor, o Príncipe Sivrouka.
Não temos hoje nenhuma escola de psicologia sob o pensamento de Flournoy, tampouco algum instituto de treinamento com seu nome. Além disso, seu nome não é citado na história da psicologia no mundo de língua inglesa, assim como o termo “psicologia sublimiar” não aparece nos dicionários. É surpreendente constatar que grande parte do que foi supostamente descoberto por Freud e Jung, já se fazia presente nos trabalhos de Flournoy, sendo extremamente pertinente a questões que afligem a psicologia atual.
TORNANDO-SE SIVROUKA (1)
Flournoy nasceu em 13 de agosto de 1854, dois anos antes de Freud. Assim como Janet, teve o benefício da formação médica e filosófica.(2) Em 1878, recebeu seu Master Degree pela Universidade de Strasbourg, seguindo então para Leipzig, onde estudou psicologia experimental com Wilhelm Wundt por dois anos. Coincidentemente, justo nessa época Wundt fundou seu laboratório de psicologia na Universidade de Leipzig. Ao retornar, como refere Henri Ellenberger, ”Flournoy apresentou a ciência da psicologia à Suíça”. (3)
Em 1891, foi nomeado professor de psicofisiologia na Universidade de Geneva e, por sua insistência, lotado na Faculdade de Ciências, ao invés da Faculdade de Filosofia. No ano seguinte, fundou um laboratório de psicologia na mesma universidade. No entanto, , não foi na psicologia experimental que Flournoy se tornou conhecido. Logo se decepcionou com as limitações do laboratório e, à semelhança de seu amigo de toda a vida, William James, saiu em busca de uma psicologia que desse conta de toda a personalidade, inclusive suas dimensões transcendentes. A questão para Flournoy era como chegar lá. Em artigo escrito em 1896, Flournoy afirma:
Uma hora passada na enfermaria ou em uma assim chamada sessão espírita, nos traz problemas muito mais vitais e psicológicos, o que não aconteceria em anos de dedicação exclusiva ao trabalho de laboratório. (4)
A PSICOLOGIA EM BUSCA DE UM SUJEITO
Para existir, a psicologia necessita do sujeito como objeto de estudo. Na época, inúmeros eram os candidatos a ocupar a primeira posição nesse ranking, dentre histéricas, criminosos, gênios, deficientes mentais, crianças… isso sem mencionarmos o sapo.
Fica difícil de imaginar que o médium ocupasse um papel diferenciado, semelhante ao ocupado pela criança na psicologia atual, o que se deve principalmente à influencia de William James, Frederic Myers e Théodore Flournoy. Como isso aconteceu? O que havia em especial a cerca dos médiuns, que os qualificasse de modo a servir de objeto da psicologia?
A segunda metade do século dezenove testemunhou o surgimento do espiritualismo moderno. O cultivo do transe – seja pelo fenômeno da incorporação, fala automática, glossolalia, escrita automática, ou predição com bola de cristal – desenvolveu-se através do espiritualismo. Enquanto para os espíritas o interesse quanto ao transe se referia exclusivamente ao conteúdo das mensagens recebidas, para os psicólogos interessava os modos da incorporação acontecer, o que veio a se constituir objeto de sua investigação.
Psiquiatras e psicólogos eminentes condenavam a disseminação do espiritualismo como se fosse uma epidemia psíquica, enquanto os espíritas, por sua vez, travavam uma disputa ferrenha com as comunidades médicas e psiquiátricas. Em 1885, Eduard Von Hartmann escreveu: “Atualmente, o espiritismo ameaça tornar-se uma calamidade pública, frente a qual todos os governos deveriam direcionar sua atenção.” (5) Wilhelm Wundt proclamou: “ Nenhum homem de ciência, imparcial e verdadeiramente independente, poderia estar interessado em fenômenos ocultos.” (6)
Em 1900, Flournoy afirmou que era justo, devido à enorme importância que o espiritualismo, a mediunidade e os fenômenos ocultos tinham conquistado entre o público em geral, que a psicologia se ocupasse do assunto, submetendo-o a rigoroso estudo experimental. (7)
Surgiu, através do espiritualismo, uma nova função social, a profissão de médium. Por volta de 1850 apareceu um livro sob o título de O Livro dos Médiuns, de Alan Kardec, que teve e continua tendo uma tremenda influência social. Tratava-se de um guia “faça você mesmo” de como tornar-se um médium, trazendo desde sugestões práticas até uma visão abrangente sobre a reencarnação no mundo. Kardec afirmava que ”cada um possui o germe das qualidades necessárias para se tornar um médium” (8), definindo que, “qualquer um que esteja influenciado por espíritos em algum grau é de fato, um médium”. (9 ) A influência onipresente do espírito leva Kardec a afirmar que “ são poucas as pessoas nas quais algum rudimento de mediunidade não é encontrado. Devemos, então, assumir que cada um de nós é um médium.” (10) Assim é que, para aqueles que queriam materializar a hipótese espiritualista, a observação de médiuns ocupava o centro das atenções.
A teoria da mediunidade de Kardec facilitou sua posterior interpretação psicológica. Para Kardec, a mediunidade era um modo exemplar de entendermos a condição humana; assim é que o estudo de um médium completamente desenvolvido nos traria uma visão mais aprofundada da questão. Dizia ele que o fenômeno da mediunidade era devido à intervenção de espíritos; sua taxonomia das formas e graus da mediunidade resultou em uma espécie de pneumatologia. O estudo psicológico dos médiuns manteve seu status de exemplar, embora agora o fenômeno não fosse mais revelador da ação de espíritos, mas do “subconsciente” ou da imaginação “subliminar”. Na busca por uma fonte intrapsíquica responsável por comunicações mediúnicas, esses investigadores contribuíram de forma decisiva para a descoberta do inconsciente.
PSICOLOGIA GÓTICA
Frederic Myers foi o pioneiro no estudo psicológico da mediunidade. Escreveu André Breton:
Devido ao fato lamentável de que a maioria desconhece o trabalho de F.W.H.Myers, que antecedeu ao de Freud, penso que devemos mais do que geralmente concedemos ao que William James chama de psicologia gótica de Myers: em seu universo completamente novo e excitante, ele nos levou às admiráveis explorações de Théodore Flournoy.(11)
Para Myers, a quem Flournoy chamou de fundador da psicologia subliminar, a psicologia em si era mero instrumento na busca da única questão que ele acreditava válida: o amor sobrevive ao túmulo? William James afirmava que o trabalho de Myers era a psicologia mais importante do século vinte. Através de uma série de artigos brilhantes, escritos a partir de 1880, Myers mapeou todo o domínio da psicologia anormal e da supranormal. Para Myers, ao contrário de seus contemporâneos Freud e Janet, as personalidades secundárias reveladas em estados de transe, sonhos, bola de cristal e escrita automática, atestavam por uma inteligência potencialmente maior do estado sublimiar ou inconsciente do que a do estado de vigília e, via de regra, suas personalidades supraliminares serviam como transmissores de mensagens de orientação.
Uma mudança crítica aconteceu a partir dos trabalhos de Myers, James e Flournoy. Argumentavam eles que o assunto crucial não era a simples questão da validade ou não das experiências espiritualistas. De qualquer forma, afirmavam que tais experiências faziam antever um insight maior quanto ao subliminar, e quanto à psicologia humana como um todo.
As investigações de Myers abriram caminho para Flournoy, fornecendo-lhe uma orientação inicial. Myers acabou por abraçar a hipótese espírita e tentou unir ciência e religião em uma síntese exagerada em sua publicação póstuma A Personalidade Humana e sua Sobrevivência à Morte Corporal. Flournoy, ao contrário, tentou manter um ponto de vista puramente psicológico, enfatizando a necessidade de distinção entre a psicologia sublimiar e o sistema filosófico-religioso de Myers. Flournoy se considerava um seguidor de Myers.
Quem eram os médiuns? Flournoy nos apresenta uma descrição do que tende a ser o “tipo médio, comum de médium”:
Pessoa comumente do sexo feminino, que nunca experimentou fenômenos psíquicos (exceto, talvez, sonambulismo leve ou sonhar acordado e alguns pressentimentos) e que, ao viver uma grande dor como a morte de um ente querido, comparece a uma sessão espírita pela primeira vez. Experimenta a mesa ou a escrita automática. Rapidamente ela se torna uma médium tiptológica ou uma escritora automática, obtendo comunicações que não ultrapassam de forma alguma suas capacidades normais, mas inicialmente a encantam e surprendem pela assim chamada emanação dos mortos. Pouco a pouco, a monotonia das mensagens, sua mediocridade intrínseca, a raridade ou até mesmo ausência de qualquer prova convincente de caráter supernatural, às vezes o clima obsessivo ou dissimulado das ditas revelações, acabam por privá-la de seu entusiasmo inicial. Após alguns meses, ou mesmo anos, a médium abandona a prática. Comumente, nada lhe resta de bom ou de mal como resultado desta “fase” mediúnica, exceto uma predisposição latente que a torna capaz de praticar a mediunidade com facilidade, quando bem desejar; dependendo de sua natureza, resta-lhe uma inclinação pelas doutrinas espíritas, e o desejo de um dia vê-las cientificamente comprovadas.(12)
Para os espiritualistas, os médiuns se caracterizavam pela capacidade de receber mensagens dos espíritos. Apesar de rejeitar esta pretensão, Flournoy afirmava que os médiuns se constituíam em um tipo psicológico específico, descrevendo seus traços característicos da seguinte forma:
Toda a diferença entre médiuns e pessoas comuns, reside no fato que, para os últimos há uma barreira entre o estado de sonho e o de vigília… com os médiuns, ao contrário… não há limite estável entre o dormir e o acordar.(13)
Flournoy descreve o conceito de sublimiar de Myers, como se segue:
Entre nossa consciência comum (o supraliminar) e nossa consciência latente (o subliminar), ocorrem flutuações e trocas perpétuas através de suas fronteiras; o seu grau de separação não é constante; o limiar não é fixo; as bordas não são impermeáveis, o fenômeno de osmose acontece de um lado para outro, assim como misturas, semelhante à mistura de líquidos de densidades variadas que quando sacudidos… Constantemente mensagens também são enviadas de nossas regiões sublimiares para nossa consciência pessoal, trazendo consigo conteúdos de diversos valores sob as mais variadas formas (automatismos sensoriais): alucinações virtuais, alucinações auditivas, ideias até então submersas, emoções, impulsos irracionais, etc.(14)
Portanto, para Myers e Flournoy, o médium era alguém cujo limiar entre o supraliminar e o subliminar era particularmente permeável, razão pela qual os médiuns acabavam sendo objeto maior de atenção da psicologia sublimiar. A observação desses indivíduos propiciou um acesso facilitado ao estudo da imaginação subconsciente.
MEDIUNIDADE OU HISTERIA?
William James escreveu em Princípios da Psicologia: “Em todas as suas formas, a possessão mediúnica parece constituir-se em um tipo especial e natural de personalidade alternativa.”(15) A mediunidade era vista como uma subcategoria especial da múltipla personalidade. O que fazia a diferença significativa era que, em casos de mediunidade, a “possessão” costumava acontecer usualmente dentro do contexto da sessão e parecia compatível com o estado de “saúde” psíquica. Mediunidade era um assunto que mobilizava interpretações contestáveis e antagônicas. Sua similaridade com casos de histeria e múltipla personalidade, fez com que psicólogos eminentes como Charcot, Binet e Janet, a assimilassem sob esses outros nomes. Binet, ao discutir experimentos em indivíduos histéricos em Alterações da Personalidade, diz: “Não há qualquer diferença essencial entre os experimentos que descrevi agora e aqueles desenvolvidos espontaneamente pelos espíritas em si mesmos.”(16)
Para os defensores da nova psicopatologia francesa, a assimilação do transe mediúnico aos transes observados em indivíduos histéricos, tornaram superfulos os paradigmas interpretativos que Myers e Flournoy construíram sobre o tema. Em 1895, Janet afirmou que o médium era um tipo patológico e que o fenômeno exibido: “tem leis e é explicado de forma semelhante, através de sérios problemas na operação mental da percepção, que descrevi sob a denominação de desagregação psicológica.”(17)
A questão remanescente para Janet era se o médium seria sempre um histérico, ou não. Ele sugeria que não. Cita o caso de sonambulismo com escrita automática, por ele observado no tempo em que trabalhava com Charcot, cujo sujeito claramente não era um histérico. Com relação à mediunidade, as questões para Janet eram: “O que são estas formas? Qual é sua relação com a histeria? Como a escrita automática se modifica nesses casos? Estes são os problemas que não cosegui resolver através da observação de numerosos médiuns.”(18)
Assim é que, para os psicopatologistas era deplorável o cultivo da dissociação que os espiritualistas propagavam, o que os levava a interpretar o fenômeno como uma epidemia psíquica.
Em 1899, Flournoy abordou o tema, dizendo ser insuficiente simplesmente referir-se aos fenômenos do hipnotismo, histeria e dissociação para explicar a mediunidade – apesar de, superficialmente, essa ser uma assimilação fácil de ser feita. Flournoy afirma que a mediunidade pode fazer-se acompanhar de um estado de saúde perfeita; portanto, o público de um modo geral, estava bastante adequado ao rejeitar a visão do fenômeno da mediunidade como resultado de histeria ou auto-hipnotismo. Observa que, contrariamente, alguns cientistas anglo-saxões viam a histeria como uma degeneração patológica de gênios mediúnicos. A partir daí, Flournoy argumenta que a mediunidade, suas variadas manifestações de condições particulares de aparecimento, devem ser estudadas em sua especificidade, sem serem simplesmente classificadas em categorias psicopatológicas pré-existentes.(19)
EM BUSCA DE UM MÉDIUM
Situei-me quando, ao chegar no último andar de uma casa no Soho ou Holloway, paguei uns shillings às atendentes e fiquei aguardando na sala de espera, pela sabedoria de alguma médium velha e gorda. Essa é uma situação que te envolve em sua dramaticidade; no entanto, se algum de meus leitores sair em sua busca, talvez nada encontre: sua gravidade e simplicidade dependem total e simplesmente do fato de que você acredite que seus mortos estão por perto.(20)
William Butler Yeats
A vidência é agora mais comum por aqui… os videntes modernos são de duas classes: os da rua Bond, que predizem sobre sexo; e a classe que é estudada por psicólogos de prestígio, tais como professor James, professor Richet e professor Flournoy. (21)
Andrew Lang
De início, o desafio para Flournoy foi o de como encontrar uma médium. Tendo-a encontrado, ela marcaria de tal forma sua vida, que ele teria enorme dificuldade em esquecê-la.
Em 1892, Flournoy escreveu: Esperávamos apenas que surgisse em nosso país uma Eusápia (Paladino) ou uma bem disposta Mrs Piper, a quem acolheríamos de braços abertos.”(22) O anseio de Flournoy por tal personagem está bem documentado em suas cartas a William James. Em 08 de dezembro de 1893, Flournoy diz a James:
Tentei entrar no circuito espiritual de nossa cidade, o que não me foi fácil. Atualmente, não temos nenhum médium que se destaque. Se me fosse dado observar de perto aqueles que vivem o fenômeno do qual ouço falar, ficaria muito satisfeito; no entanto, tais indivíduos se refugiam no escuro e na solidão. (23)
Após vários meses sem qualquer sucesso, Flournoy escreveu a James, em 18 de março de 1894: “Os poucos médiuns e indivíduos sensíveis à alucinações telepáticas que tive oportunidade de encontrar em Gênova, não me confrontaram com algum fenômeno mais consistente.”(24)
Finalmente, dezoito meses mais tarde, ele a encontrou. Escreveu para James, em 04 de setembro de 1895:
Quase me esqueço de contar sobre o que mais tem me interessado nos últimos meses: é uma médium (não profissional, que não recebe pagamento), de um grupo espiritual que aceitou minha participação, apesar de minha posição neutra. Participei de cerca de vinte sessões…psicologicamente é muito interessante, esta mulher é um verdadeiro museu de fenômenos e tem um repertório de uma variedade aparentemente ilimitada, que acaba por se revelar na fala da mesa – ela ouve vozes, tem visões, alucinações táteis e olfativas; apresenta escrita automática, sonambulismo total, catalepsia, estados de transe, etc.. Todos os automatismos sensórios e motores de Myers – todos os fenômenos histéricos clássicos – se apresentam cada um de sua vez, nas formas mais variadas e inesperadas, sem jamais se repetirem. O conteúdo desses fenômenos sempre remete a eventos anteriores, às vezes de muitos anos antes, e diz respeito a familiares ou ancestrais de alguma pessoa presente à sessão; a situação é sempre considerada fidedigna. A boa fé da médium é inquestionável e a estranheza de suas revelações parece ser calculada de modo a convencer os espiritualistas do grupo. No entanto, nos cinco ou seis casos envolvendo membros já falecidos de minha família, eu finalmente comprovei que todas essas pessoas tinham tido contato pessoal com familiares da médium cerca de cinquenta anos antes. A suposição natural é de que essas revelações, relativas a fatos antigos e invariavelmente exatos, eram remanescentes de relatos que a médium ouvira da boca de seus parentes na infância… a grande maioria dos fenômenos era, evidentemente, a reprodução de lembranças esquecidas – ou memórias registradas inconscientemente. Na verdade, existe uma segunda personalidade na natureza dessa médium, que percebe e relembra instantes que escapam à consciência comum… Tive a impressão definitiva de que as revelações obtidas nas sessões, na sua maioria…correspondiam ao fenômeno da “criptomnésia” – o que é irritante nesse tipo de observação é a dificuldade de ser preciso; o médium e os membros do grupo tem horror a tudo que pareça um “experimento”.(25)
E, a quem Flournoy encontrou? Era mesmo Élise Muller, genovesa, uma balconista de loja? Seria ela ainda maleável naquele momento, capaz de personificar alguém, de levar adiante qualquer outro papel – inclusive o de ser objeto de estudo de uma ciência da psicologia, ainda a ser fundada – de tornar-se um “museu vivo” de todos os fenômenos passíveis de serem taxonomizados, classificados, “dissociados” pelas lentes analíticas da nova psicologia… Alguém para quem esse texto seria sua genesis mais espetacular?
TORNANDO-SE HÉLÈNE
Quem era ela – a que se tornou Hélène Smith? Nasceu Élise Catherine Muller, dia 09 de dezembro, em Martigny, Suíça. Quando Flournoy a encontrou, trabalhava como vendedora numa loja de sedas. Ele foi levado às suas sessões por August Lemaitre. Naquele tempo, havia dois tipos de médium: os médiuns profissionais, que cobravam uma taxa, e os médiuns amadores, que atendiam de graça. Ela era do segundo tipo, o que a recomendou.
Lemaitre foi o primeiro a escrever sobre ela: em 1897 publicou um artigo intitulado “Contribuição ao estudo dos fenômenos psíquicos”(26), no qual Élise Muller aparece, curiosamente citada por Lemaitre como sendo do sexo masculino. Ela não havia se tornado ainda “Hélène Smith”. Lemaitre enfatizou a qualidade de seu caráter: “Nossa médium é de boa fé, alguém que diz a verdade e que tem minha total confiança”.(27) Lemaitre parecia defender a ideia da interpretação espírita desse material por ela trazido. Seu artigo foi duramente criticado por M. Lefébure, que lamentou a falta de material na publicação de Lemaitre:
Se, de fato, M. L. …compilou diversas falas ou discursos da médium, se ele vier a publicá-los, e se os Indianos referidos ali aparecerem apoiados por provas, por seu dialeto e pelo senso comum, aí sim o espiritismo terá dado um grande passo.(28)
O cenário estava montado. Em artigo subsequente, Flournoy escreveu a seu editor, explicitando sua distancia do ponto de vista de Lemaitre, uma vez que este havia citado seu nome. Deste modo, anunciou seu projeto de prover “uma interpretação puramente psicológica” do “tão curioso” fenômeno da mediunidade, “sem recorrer à espíritos, noções de reencarnação, ancestralidades, etc”.(29) Flournoy, então já se colocava na posição de questionador.
No entanto, permanece a questão sobre como Élise teria adquirido seu pseudônimo. O neto de Flournoy, Olivier F., aponta que de acordo com a opinião de Denise Werner, neta de Flournoy, Élise Muller teria ela mesma escolhido seu pseudônimo. Olivier faz a significativa observação de que Hélène era o nome de uma das filhas de Flournoy, nascida em 1891, a quem Élise teria encontrado.(30)
PENETRANDO NA PSICOLOGIA
Os estados de transe foram abordados em muitos discursos, nos quais incontáveis definições e propriedades foram alegadas. Em Os Princípios da Psicologia, William James diz:
Os três estados de Charcot, os estranhos reflexos de Heidenhain, e todos os demais fenômenos corporais que têm sido referidos como consequências diretas do estado de transe em si, não o são. São produtos de sugestão, nos quais o transe não interfere com qualquer sintoma em particular; no entanto, sem o estado de transe, tais produtos de sugestão não teriam acontecido (31).
James observa, mordazmente, a cilada que isso representa para o desenvolvimento da psicologia:
Qualquer peculiaridade pessoal em particular, qualquer truque que acidentalmente assim se revele, ao chamar a atenção pode tornar-se um esteriótipo, servindo como padrão de imitação e funcionando como um tipo de escola. O primeiro indivíduo treina o operador, que treina os indivíduos seguintes, todos juntos e em boa fé conspirando para produzir um resultado completamente arbitrário. Devido à extraordinária perspicácia e a sutileza de percepção que os indivíduos manifestam frequentemente para com os operadores a quem se reportam, é difícil mantê-los ignorantes das expectativas que os últimos possam ter. Assim é que facilmente verificamos um velho motivo reaparecendo em um novo indivíduo, bem como assistimos a aparição de algum sintoma esperado, sobre o qual lemos ou ouvimos falar (32).
Portanto, para James, a psicologia estava por si só em estado de “sugestibilidade aumentada” ou comprovadamente em “auto-sugestão”. Aqui, James se baseava no entendimento de Josef Delboeuf, que em 1886, escreveu:
Não há qualquer dúvida sobre a influência do hipnotizador sobre o hipnotizado – tal mestre, tal discípulo. Os indivíduos, no entanto, e principalmente o primeiro deles, treinam o experimentador que os dirige, e sem se darem conta, determinam seu método e maneiras. Assim é que podemos reverter o provérbio em: tal discípulo, tal mestre. A ação do primeiro discípulo sobre o mestre é então repassada a outros indivíduos que disseminam esses procedimentos, assim criando escolas que detém o monopólio sobre determinado fenômeno (33).
Para James e Flournoy, para que se desenvolvesse uma psicologia digna de seu nome, era crucial ter como questão central a investigação dos estados de transe (34). A partir desta proposta, a investigação de médiuns ocupava lugar de honra. Para Flournoy, a questão principal era a interpretação diferencial dos estados de transe. Não havia ali uma especificidade particular dos transes mediúnicos, ao revelar capacidades que de longe sobrepujavam o estado de consciência desperta? A possibilidade de uma psicologia subliminar residia na resposta afirmativa a esta questão.
Desde a época do Marquês de Puiségur, as propriedades de clarividência, telepatia, hipermnésia e lucidez têm sido atribuídas ao estado de transe. Posteriormente, esses atributos foram estudados no extraordinário caso de Justinuss Kerner, o “vidente de Prevost”, que pode ser considerado o principal precursor ao estudo de Flournoy. A partir de Puiségir e Kerner surgiu a noção do transe possuir propriedades que se sobressaiam ao estado de vigília. Esta tradição difere marcadamente da concepção de transe de Charcot, que considerava a capacidade de ser hipnotizado como um sintoma da histeria, o que foi de crucial importância na estruturação das ideias de Freud.
O transe mediúnico é uma instância do desenvolvimento dos estados de transe, fenômeno conhecido nas mais diversas culturas. Mikkel Borch-Jacobsen diferencia duas abordagens para a terapêutica do transe, uma representada pela psicanálise e a outra por terapias “tradicionais”. Em seu entendimento, o telos da psicanálise reside na tentativa de acabar com o transe (dissolução da transferência, etc…). Tal aproximação pode ser chamada de “alopática”. Contrastando com esta perspectiva, temos a abordagem ”homeopática”, cujas estratégias buscam estabelecer uma relação alternativa com o transe, ao invés de uma postura bélica contra o mesmo. Escreveu Borch-Jacobsen:
Nas terapias tradicionais em que a hipnose se configura, a questão não é a de suprimir o mal que aflige o paciente (sua ausência de identidade, sua loucura mimética), mas de provocar ao limite o seu agravamento de modo ritual, especular. A seguir alguns exemplos, bastante simplificados:
Thonga, o “mal dos deuses”,uma vez tendo exorcizado o espírito maléfico que os possuía, tornou-se o “mal” de um espírito benevolente. (35) Irmã Jeanne dos Anjos, de início possuída pelo demônio Urbain Grandice, tornou-se mística profissional.(36) Gilberte Rochette, um “ex-neurótico”, tornou-se o sacerdote maior da Loja Magnética de Lyon (37). Bertha Von Pappenheim, ex “caso” de dupla personalidade, tornou-se a pitonisa de Breusr. (Cumpre então questionarmos: os analisandos, ao término do “passe” de transferência, tornam-se analistas?) Consequentemente, pouco importa se o dito “sintoma” desapareceu ou não. Acima de tudo, o que importa é que o mesmo foi alocado, elevado, cultivado por esta assim chamada “terapia”.(38)
A história tardia de Hélène Smith pode ser acrescentada à lista acima. Em sua segunda vida, como pintora religiosa, Hélène Smith finalmente encontrou seu metier. Na psicologia sublimiar havia uma valorização do transe – os médiuns, mesmo quando não vistos como um portal para o além, no mínimo tinham atribuídas para si capacidades e poderes que em muito excediam os da psicologia “normal”.
O estudo de Flournoy não foi o primeiro, tampouco o mais extenso ou detalhado estudo de um médium. O estudo de Mrs. Piper costuma ser considerado como o que inaugurou a investigação cuidadosa do transe mediúnico. Esses primeiros estudos, tais como o de Hodgson de Mrs. Piper, foram primariamente motivados pelo desejo de encontrar uma prova autêntica e genuína da existência do além, bem como de obter comunicações verídicas dos mortos. Os principais paradigmas alternativos foram fraudulentos ou telepáticos, sendo que nenhuma dessas hipóteses teve parte significativa no texto de Flournoy. A inovação em “da Índia ao Planeta Marte” é que este foi o primeiro e maior estudo da chamada pseudo-possessão de Myers, cujo objetivo maior era invalidar a origem supernatural do fenômeno e dar conta de sua psicogênese. Sem dúvida, conseguiu estabelecer um paradigma cético e devastador na pesquisa psicológica.
DESCOBRINDO O INCONSCIENTE
Ellenberger aponta que, em 1900, quatro diferentes aspectos do inconsciente já haviam sido demonstrados: sua função conservadora, a capacidade de armazenar uma quantidade de memórias e percepções; sua função dissolutiva, a tendência à dissociação e funções automáticas; suas funções criativa e mitopoética, a capacidade de produzir romances mitopoéticos sublimiares. (39) É significativo o fato de Flournoy ter sido o principal pioneiro na exploração desses aspectos.
Em Da Índia ao Planeta Marte, Flournoy se refere seguidamente de maneira inter-cambiável aos termos sublimiar e subconsciente. Com relação ao primeiro termo, seu uso denota solução de continuidade com os modos de Myers, que foi quem o cunhou. Já com relação ao último, Flournoy em muito expande seu significado, com relação ao uso de seu criador Janet. Quanto ao desenvolvimento da concepção do termo subconsciente, originalmente de Janet, comenta Claparède:
A descoberta e a interpretação biológica e psicológica desta capacidade criativa do subconsciente é o que demarca para mim o grande progresso da teoria de Flournoy sobre a de Janet. Para o sábio francês,…o que importa acima de tudo é que a criatividade é atividade normal do espírito. A outra atividade, a do segundo eu, é apenas conservadora… Quanto a esse caráter totalmente passivo do subconsciente (Janet),… Flournoy o substitui por uma atividade criativa original e autêntica, seguidas vezes muito mais poderosa que aquela da consciência.(40)
Em 1900, Flournoy observou que se por um lado havia muito trabalho referente ao papel das percepções inconscientes e memórias latentes, a imaginação subliminar não tinha ainda sido estudada com a atenção merecida. Para Flournoy, a imaginação sublimiar era fonte da imaginação consciente, e não o inverso. Observa ele:
O processo imaginativo de personificação alheia já se desenrolou a si mesmo no sonho, na hipnose, e em muitas obsessões patológicas; mesmo assim, assume importância específica e prática, no chamado fenômeno mediúnico. (41)
Devido ao caráter exemplar com que a mediunidade era apresentada nos trabalhos de imaginação sublimiar, Flournoy afirmou que o estudo da mediunidade poderia, por sua vez, clarear a psicologia dos sonhos, hipnose e obsessões.
Flournoy enfatizou quatro funções principais do inconsciente: sua atividade criativa, sua função protetora, sua função compensatória, e sua tendência lúdica. Estas quatro funções se apresentam de forma proeminente na interpretação de Flournoy para os transes de Hèléne: Leopold, seu espírito guia representa a função protetora ou de automatismo teleológico, que intervém e cuida de Hèléne quando em dificuldade; suas existências anteriores e extraterrestres são vistas como compensações às suas vicissitudes; a criação de suas falas “marcianas” e “hindus” é entendida como ato de admirável criatividade. Para Flournoy, seus transes representam uma reversão a um estágio anterior do desenvolvimento infantil caracterizado pelo brincar – o que fundamenta segundo o trabalho de Karl Groos. Uma vez que o brincar é função —preparatória, esta reversão é compensatória, possibilitando acesso a um nível de criatividade que se achava perdido. Poderíamos dizer que os transes de Hèléne eram o inconsciente de Flournoy, ao qual ele jamais acessou de modo tão revelador.
O material dessa atividade sublimiar foi fornecido através do fenômeno da criptomnésia.
CRIPTOMNÉSIA
Desde o tempo dos magnetistas, tem sido dada atenção às propriedades hipermnésticas do transe. Essas capacidades parecem sugerir que há uma grande quantidade de informação que, apeasar de ter sido percebida, repousa agora fora do alcance da atenção consciente. A locação dessas memórias escondidas foi atribuída ao inconsciente. Flournoy foi quem mais se dedicou ao mapeamento da extensão desse fenômeno e à observação das transformações que ocorriam a tais memórias, enquanto em estado latente.
A criptomnésia desempenha papel crucial na análise de Flournoy, constituindo-se no paradigma principal da hipótese espiritualistica. A significância do fenômeno foi apontada por Janet, que faz referência a um exemplo de criptomnésia no trabalho Revue Spirits de M. Goupil, sobre escrita automática. Janet refere ter visto e descrito fatos similares, fornecendo a seguinte explicação:
Quando uma determinada sensação se acha presa a ações subconscientes, de modo correspondente ocorre uma anestesia específica da personalidade. Quando uma escrita automática manifesta uma determinada memória com persistência, observa-se amnésia correspondente na consciência normal.(42)
Janet valoriza tais descrições e lamenta o fato de elas serem tão poucas. Precisamente esta lacuna foi preenchida por Da Índia ao Planeta Marte.
O relatório de Flournoy sobre criptomnésia apresenta um modelo de memória que busca abordar a inter-relação desta memória com a fantasia. Para Flournoy, o que foi apresentado como memória – no caso de Hèléne, de existência anterior – na realidade representava uma memória escondida e esquecida, que sofreu processo de elaboração subconsciente.(43)
Significativamente, este trabalho foi apresentado em privado e para Fliess, no interregnum entre a retração confessional de Freud de sua teoria da sexualidade, e sua retração pública alguns anos mais tarde.
…segue em tradução… Telma Ripoll Becker