Sonu Shamdasani (1990) – UMA MULHER CHAMADA FRANK. Tradução: Letícia Capriotti Revisão: Gustavo Barcellos
Um ícone feminino encabeça Transformations and Symbols of the Libido de Jung, presidindo o nascimento da Psicologia Analítica. Se tivéssemos que colocá-la num lugar de honra da memória, talvez tivéssemos, olhando para trás, A Louca Miss Miller, uma mariposa que desejava o sol, aprisionada em um diagnóstico de esquizofrenia. Neste artigo, com base em pesquisa histórica, desejo reenfocá-la com uma nova roupagem, acreditando que o modo pelo qual imaginamos um ícone como esse desempenha um papel crucial, informando e guiando a maneira como lemos o texto, figurativamente moldando, portanto, a imaginação junguiana e as vestimentas de nossas vidas.
Até esta data, as leituras históricas de Transformations and Symbols of the Libido (Jung, 1912) e da versão revisada em 1952 Symbols of Transformation enfocaram o(s) texto(s) em termos do desmantelamento da relação Freud-Jung e do desenvolvimento da metodologia de Jung.
Tal enfoque é encorajado pelo relato do próprio Jung no prefácio da versão revisada. Lá ele descreve que o livro todo surgiu para ele como uma avalanche ou uma explosão de todos os conteúdos psíquicos que não encontravam espaço na estreita psicologia freudiana. Além disso, “sua imperfeição e insuficiência” estabeleceram o programa que ele seguiria nas próximas décadas de sua vida. Jung, entretanto, destacou também o papel de Frank Miller, heroína do livro, ao escrever que: “tudo isso é na verdade apenas um comentário ampliado sobre uma análise ‘prática’ dos estágios prodrômicos da esquizofrenia. Os sintomas do caso formam o fio de Ariadne que nos guia através do labirinto de paralelos simbólicos”. Em seu prefácio à edição de 1924, Jung adiciona esta extraordinária novidade:
Confirmação extremamente valiosa… alcançou-me em 1918 através de um colega americano que tratava Miss Miller de distúrbio esquizofrênico iniciado após uma curta temporada na Europa. Ele me escreveu dizendo que até mesmo seu conhecimento pessoal da paciente não lhe havia ensinado “nem um tiquinho a mais” sobre sua mentalidade. Esta confirmação levou-me a concluir que minhas reconstruções sobre os processos semi-conscientes e inconscientes da fantasia tinham evidentemente sido acertadas em todos os seus aspectos essenciais.
É espantoso que Frank Miller, como que enterrada sob a avalanche da erupção violenta do(s) texto(s), não tenha sido significativa em nenhum estudo até hoje – apesar de ela ter provocado o mais longo estudo de caso e o “Portrait of a Lady” das obras completas de Jung. Será que estamos visualizando a figura de Frank Miller como um mero acessório adornando o corpo do texto – um lenço, uma meia fina, uma capa ou um perfume duradouro – que não merece considerações mais sérias? Teríamos perdido a Ariadne de Jung, que o guiou através do labirinto?
Aqueles de nós envolvidos na aventura junguiana tivemos as figuras de nossas vidas moldadas e modeladas segundo a “Imago Miller” de Jung, visto que usamos ou temos usado o mito da heroica batalha da libertação da Mãe que Jung elaborou a partir das criações de Frank Miller. Nossas vidas têm sido uma “Imitatio” da forma como ele elaborou o caso dela, uma elaboração imitativa da luta dela contra o domínio das Mães, da sua Jornada Noturna pelo Mar e tentativa de Renascimento – uma atuação (‘acting-out’) do(s) texto(s). Assim, uma imagem machucada ou mal-vestida de Frank Miller pode ter tido um efeito terrível na psique junguiana,
como muitas vezes Jung afirmou acontecer com figuras pobremente imaginadas. Para abordar este tópico, devemos nos voltar para o Seminário de 1925 de Jung, onde candidamente ele falou do papel central dela em sua imaginação.
Jung disse que, no meio de seus estudos mitológicos, deparou-se com as fantasias de Miller, que atuaram como um catalisador de todo o material que ele havia coletado, e que em Frank Miller ele viu alguém que tinha fantasias mitológicas como ele próprio. Ele conta como se passaram vários anos até que pudesse enxergar através da fantasia de objetividade com a qual ele havia escrito o livro, e concluir que o livro descrevia seus processos inconscientes, sobre os quais deu o seguinte depoimento:
Ela absorveu minha fantasia e passou a atuar como um diretor de cena… Ela se transformou em uma figura de anima… a portadora de uma função da qual eu estava muito pouco consciente. Em minha consciência eu era um pensador ativo, acostumado a submeter meus pensamentos à mais rigorosa forma de direção; portanto, a fantasia era para mim um processo mental verdadeiramente repulsivo. Como uma forma de pensamento, eu a considerava totalmente impura, um tipo de relação incestuosa totalmente imoral sob o ponto de vista intelectual… Chocava-me pensar na possibilidade de uma vida fantasiosa em minha própria mente… e minha resistência a isso era tão grande que apenas admitia este fato em mim mesmo através da projeção de meu material sobre o de Miss Miller. Ou, em termos mais fortes, o pensamento passivo me parecia de tal forma uma coisa fraca e pervertida, que só conseguia lidar com ele através de uma mulher doente. De fato, posteriormente Miss Miller tornou-se completamente insana… Tive que me dar conta então que em Miss Miller eu analisava minha própria função fantasiosa que, por ter sido tão reprimida, era semi-mórbida como a dela.
Posteriormente Jung acrescenta: “Um dos fatores mais importantes foi eu ter elaborado a morbidez de Miss Miller em mitos de uma forma satisfatória para mim; assim eu assimilei o meu lado Miller, o que me fez muito bem”.
Nesta passagem crucial, Jung afirma que, naquele tempo, Frank Miller era sua anima, e que foi através dessa projeção que suas conclusões a respeito da autonomia da fantasia puderam surgir. Surpreendentemente, a declaração de Jung de que Frank Miller era sua anima naquele momento crucial não foi levada em conta em nenhum estudo de seu trabalho. Repetindo, Jung não diz que a figura de anima através da qual ele percebeu a autonomia da fantasia foi Toni Wolff, Sabina Spielrein, Emma Jung ou Maria Moltzer, mas sim Frank Miller, e que era ela a diretora de cena de sua fantasia.
É estranho que a descrição de Jung sobre o seu afastamento do preconceito contra a fantasia, que tinha como origem uma visão instrumental da razão, tenha vindo relacionada a um preconceito equivalente contra as mulheres. Jung, que tanto tinha feito para contrariar a visão da esquizofrenia como processo doentio, descreve Frank Miller como uma mulher “mórbida”, “doentia” e “perturbada”. Estaríamos visualizando Frank Miller como um manequim de uma costureira qualquer, no qual Jung bordou seus elaborados desenhos mitológicos? Até que ponto tais denominações pertencem corretamente a ela e até que ponto pertencem à louca anima de Jung? Teve Jung alguma dúvida ética quanto a escrever seu estudo sobre uma pessoa viva que ele nunca havia encontrado e ao revelar depois o seu colapso?
Para começar, a última questão parece de fato ter sido o caso. Em uma nota de rodapé em Transformations and Symbols of the Libido, que foi omitida da versão revisada, Jung escreve:
Não esconderia que por um momento permaneci em dúvida se deveria me atrever a revelar analiticamente os problemas pessoais que a autora, deixando de lado o egoísmo face aos interesses científicos, havia revelado ao público geral. Mas disse a mim mesmo que a autora teria que suportar um entendimento mais profundo, assim como as objeções da crítica. Obviamente uma pessoa sempre coloca algo em risco ao se expor ao público em geral. Minha total falta de laços pessoais com Miss Miller permitiu-me um discurso livre; ao mesmo tempo, livrou-me dos compromissos de cortesia que devemos a uma dama – que realmente afetam o curso do raciocínio. A personalidade da autora me é, portanto, tão nebulosa quanto suas fantasias. Tive o cuidado, assim como Ulisses, de deixar que esta sombra bebesse apenas o sangue suficiente para poder falar e revelar alguns segredos do Submundo. Não que eu tenha tido prazer em extrair problemas pessoais de estranhos de modo a colocar o objeto de minhas conjecturas num pelourinho, mas porque desejava mostrar seu segredo individual como sendo universalmente válido. Por essa razão, assumi a tarefa desta análise, pela qual a autora possivelmente me agradece muito pouco.
Nesta violenta passagem, Jung teleologicamente justifica o sacrifício da privacidade de Frank Miller pela nobreza de seu objetivo.
Para melhor explorar as questões levantadas, precisamos descobrir quem era o psiquiatra dela. Felizmente, em 13 de dezembro de 1955, Michael Fordham escreveu para Aniela Jaffé, em nome dos editores das Obras Reunidas (The Collected Works), solicitando de Jung o nome do psiquiatra de Frank Miller e o nome da instituição onde havia sido internada. Eles desejavam incluir nas Obras Reunidas todo o material que pudesse ser encontrado.
Aniela Jaffé respondeu que infelizmente Jung não se lembrava do nome do psiquiatra e que ele achava melhor não publicar nada devido ao sigilo médico, já que ela poderia ainda estar viva.
Enquanto isso, a carta de Fordham cruzou com uma carta escrita em 17 de dezembro por um doutor de nome Katzenellenbogen, que havia escrito sem motivo a Jung, e que termina com a seguinte frase: “Em relação ao ‘Caminhos da Libido’ (‘The Way of the Libido’), relatei-lhe muitos anos atrás que a autora desta narrativa, Miss Miller, era naquele tempo minha paciente no Danvers State Hospital. Meu diagnóstico, a partir do exame vivo desta pessoa, confirmou totalmente a análise intuitiva da autora baseada unicamente em seu livreto. Naquele tempo eu lhe chamei a atenção para este fato”.
Jung pensou que os arquétipos estavam funcionando; ele deu a Fordham carta branca para contactar Katzenellenbogen e descobrir o que pudesse e chegou até a querer citar este episódio como prova adicional de sua teoria da sincronicidade.
No curso das investigações conduzidas pelos editores das Obras Reunidas, seus boletins hospitalares foram recuperados. Katzenellenbogen foi incumbido de escrever um estudo comparando Frank Miller e o livro de Jung, o que infelizmente nunca foi feito.
O mais próximo que alcançamos foram lembranças da profunda impressão que ela causou nele com sua cultura e inteligência, espalhadas nas cartas dele que consegui recuperar. Além do mais, o material que os editores recuperaram de Danvers estava incompleto, faltando laudos de internação, correspondências importantes e um crucial documento ilustrado anunciando as conferências dela.
Uma leitura de seus registros psiquiátricos parece ser interrompida por uma série de três questões: Qual era seu verdadeiro nome? Estava Jung tão surpreendentemente correto em sua análise dela? O que mais eles nos revelam sobre Frank Miller, o grande Ur-case da psicologia junguiana?
As leituras junguianas tomaram o nome Frank Miller como um pseudônimo. Entretanto, em nenhum lugar do livro original de Jung ou no dela existe alguma indicação de que seu nome era um logro, exceto talvez pela improbabilidade de ‘uma mulher se chamar Frank’. Significativamente, Jung só afirma que era um pseudônimo no prefácio à edição de 1924, quando revela o seu colapso.
Nos seus boletins hospitalares, resenhas de suas conferências e em poemas e ensaios dela que encontrei, seu nome é dado como Frank Miller. Poderia talvez ser o primeiro nome um apelido para Frances? Localizei sua certidão de nascimento, que atesta que no dia 11 de julho de 1878 uma criança do sexo feminino nasceu, filha de Frank e Bessie Miller, na cidade de Mobile, Alabama.
Infelizmente isso não trouxe nenhuma pista sobre seu verdadeiro nome. No entanto, localizei o censo de 1880 do estado do Alabama que dá seu nome como — Frank Miller.
Apesar de aparentemente não existir um pseudônimo, sabemos que ela cuidou de feminilizar seu nome. Quando registrou-se nas Universidades de Berlim, Genebra e Lausanne para cursos de literatura e filosofia, utilizou o nome de Franceska, o que confere uma irredutível duplicidade à sua assinatura. Talvez devêssemos escrever a partir de agora, Frank/Franceska Miller.
A questão sobre seu verdadeiro nome já começou a agitar o âmbito da narrativa junguiana tradicional. Agora chegamos na questão de seu colapso, como relatado a Jung por Katzenellenbogen, que, depois do tratamento cruel que o livro de Jung sofreu nas mãos dos freudianos, deve ter sido visto de certa forma como uma defesa.
No diagnóstico lê-se “personalidade psicopática com traços hipomaníacos”. O histórico da família dela é dado como “ruim”. Ela é descrita como sendo de “temperamento instável”, “erótica”, “vaidosa” e “inclinada a ser falante”. O prognóstico dado para a hipomania é “bom” e o dado para a personalidade psicopática “muito ruim”.
O diagnóstico parece de alguma forma divergir daquilo que fomos levados a suspeitar. Talvez devêssemos agora olhar para o discurso dela – que perturbações, alucinações e deformações ele revela? O que a própria Frank Miller tem a dizer sobre sua situação? Ela afirmou que:
…ela estava perfeitamente disposta a permanecer no hospital, desde que algum homem em quem pudesse confiar lhe dissesse que ela era insana e que necessitava estar ali, mas que fora enviada para lá sob a promessa de ser mandada para um sanatório particular para descansar, já que tudo que precisava era de descanso. Ela não era insana e pensava não ter sido tratada corretamente ao ser enviada a um hospital. A paciente disse estar nervosa e exausta e que precisava de repouso e de algum tipo de tratamento para um problema gástrico do qual já vinha sofrendo já há algum tempo. Não há alucinações ou delírios. Tanto a consciência quanto a percepção são claras.
O psiquiatra que a atendeu era nada menos que Charles Ricksher, um antigo colega de Jung no Burghölzi.
Frank Miller parece estar longe de ser uma maníaca delirante – lúcida, clara e defendendo seus direitos como mulher, fica indignada, como deveria ficar, por ter sido colocada contra sua vontade e sem seu conhecimento em um asilo estadual para doentes mentais. E mais, ela foi liberada depois de apenas uma semana e levada por uma tia que prometeu enviá-la para um sanatório particular.
Não existem sinais imediatos de que ela tenha passado o resto de sua vida como uma pessoa abandonada, regredindo em um asilo de loucos.
O diagnóstico de psicopatia daquele tempo na área de Boston foi estudado por Elizabeth Lunbeck, em um artigo intitulado “A New Generation of Women: progressive psychiatrists and the hypersexual female”.
Ela aponta o fato de diagnósticos de psicopatia serem largamente aplicados a jovens mulheres pioneiras em viver sozinhas nas cidades e em alcançar uma certa liberdade para gastar e para associar-se com quem quisessem. A expressão emergente da sexualidade e a independência destas mulheres transgrediam as normas sociais e foram suficientes para que elas fossem estigmatizadas como imorais, e, portanto, internadas. Suas aspirações geralmente eram ridicularizadas pelos psiquiatras. Os eventos imediatos que conduziram à hospitalização de Frank Miller fazem parte desse quadro.
A terceira questão — o que mais o material nos diz sobre Frank Miller — promete modificar radicalmente o modo como a víamos até então. No entanto, ao invés de apenas olharmos para vida dela como algo que empiricamente desconfirma a análise de Jung, devemos estar atentos em primeiro lugar à sedução da questão que enquadra o texto de Jung desta forma. Pois apresentar a questão empírica coloca a leitura do texto dentro de um par binário de confirmação e desconfirmação e dramaticamente convida a um desenrolar de seu oposto. Ao invés de simplesmente colocar a vida dela dentro desses dois papéis, seria muito mais produtivo deixá-la subverter a dicotomia e explorar as dobras, vincos e pregas mais sutis entre ela e os textos dele, apresentando novos modelos de relação entre ambos. Se simplesmente a olharmos como alguém que realça ou ofusca a grandeza de Jung, nós não estaremos deixando que ela apareça em suas próprias vestimentas. Tirar de Jung esse fardo permite que estes aspectos remodelem nossa leitura do seu trabalho.
O limite do meu artigo impede uma consideração mais ampla sobre a vida e a época em que Frank Miller viveu. Tal consideração requereria atenção para questões como as circunstâncias relativas às mulheres criadas no Alabama e na Geórgia depois da derrota do Sul e as de uma americana viajar pela Europa e Rússia antes da Primeira Grande Guerra e da Revolução Russa. Meu propósito é o de drapear o resto deste artigo em torno de sua atividade criativa, mostrando-a primeiro em suas conferências sobre trajes, para em seguida concluir com uma releitura de seu artigo e da obra de Jung.
Somos privilegiados não somente por ter a figura de Frank Miller pronta e sob medida para os designs de Flournoy, Jung, Katzenellenbogen e os meus, mas também como ela própria se apresentou, e isso ‘à la mode’ com que podia ser vista no seu apogeu.
O folheto de sua conferência inicia-se assim:
Depois de anos de viagens e estudos no exterior, depois de cuidadosas pesquisas em bibliotecas famosas e da ajuda de vários homens ilustres, depois do preparo em seis universidades e faculdades e da experiência de contribuir com vários periódicos em ambos os lados do Atlântico, Miss Frank Miller apresenta uma série de três conferências ilustradas sobre trajes da Rússia, Grécia e Escandinávia, fato que já é notícia em jornais de cinco diferentes idiomas e que já despertou interesse em muitos estados do norte dos EUA e do Canadá. A estréia de Miss Miller foi nada mais nada menos que em uma instituição como a Universidade de Colúmbia, local onde as apresentações iniciais foram feitas.
A cobertura de suas conferências em jornais — e fotos dela desfilando elegantemente pelo palco vestida como as damas da Imaginação que retratava – nos ajudam a imaginar como teria sido fazer parte do círculo de suas palestras.
O Brooklyn Daily Eagle de 21 de novembro de 1902, diz que:
uma conferência especialmente interessante foi dada ontem à tarde por Miss Frank Miller a respeito do desenvolvimento da arte, literatura e música da Rússia nos últimos cem anos… Miss Miller passou dois anos na Rússia, visitando todos os seus grandes centros, e suas observações sobre os hábitos e os costumes do povo basearam-se nos seus conhecimentos pessoais, o que acrescentou ainda mais charme ao seu discurso. Ela realizou um estudo especial sobre arte, música e literatura… e completou seus comentários com várias traduções originais… Sua fala foi concluída com um recital de um poema original intitulado “The Service”, com referência à Catedral de St. Isaac… O que aumentou o interesse geral foi a aparição da conferencista em um traje Boyar do período medieval e depois em um traje de uma camponesa do norte da Rússia. Esse último estava particularmente pitoresco e decididamente lhe caia muito bem, e o colorido brilhante, a beleza do bordado e do trabalho manual provocaram a admiração das muitas mulheres presentes… cordões de contas coloridas que adornavam seu colo aumentavam o efeito pitoresco de seu traje e suas botas de cano alto e couro macio muito coloridas foram tão admiradas quanto seu alegre traje nas cores vermelho, preto e branco. O traje de dama Boyar (ou membro da alta sociedade proprietária de terras) era em tons cinza claro… vários pingentes de aço cortado davam-lhe um toque brilhante e um chapéu e uma capa de arminho belíssima completavam o traje.
O Columbia Spectator de 3 de dezembro de 1901 relata:
Por sugestão de Mr. S.P. Avery e com seu patrocínio, Miss Frank Miller proferiu a segunda de suas deliciosas “leituras sobre trajes” em 21 de novembro… Foi um excelente apanhado das condições artísticas, sociais, literárias e políticas da Grécia moderna. A personalidade artística da conferencista e a qualidade peculiarmente simpática de seus modos e estilo tornaram a palestra extraordinariamente agradável… Dentre os presentes estavam Mr. Avery, o cônsul grego, e muitos membros de projeção da colônia grega de Nova York.
Botassi, o cônsul grego, teve isso a dizer sobre sua presença marcante: “Minha querida Miss Miller, sua conferência na noite passada sobre a Grécia foi deliciosa, digo isso sem hesitação; um sucesso. Você manteve seu público enfeitiçado e não houve um momento sequer em que você não tenha sido muito interessante… E você estava muito charmosa no seu traje camponês grego. Quanto a seu traje antigo, só posso dizer que imaginei uma das cariátides da Acrópole emergindo do Erectheum para nos encantar os olhos…”
Como um aplique em torno do artigo dela, algumas palavras são necessárias sobre Theodore Flournoy, com quem ela estudou na Universidade de Genebra. A influência de Flournoy sobre Jung, possivelmente maior que a de Freud, ainda está para ser adequadamente explorada. Jung chegou a dizer que foi através de Flournoy e James que ele “aprendeu a compreender a natureza das perturbações psíquicas, dentro do setting da psique humana como um todo”.
A edição alemã de Memórias, Sonhos, Reflexões de Jung contém um entusiasmado tributo a Flournoy: Jung escreve que foi dele que tirou a ideia da Imaginação Criativa.
A concepção de Flournoy sobre os automatismos teleológicos — impulsos úteis e gratuitos que preparam para o futuro — antecipou ideias que formam o corpo do pensamento junguiano: a autonomia e a teleologia da psique; a natureza criativa e compensatória do inconsciente; e a sincronicidade.
A obra-prima de Flournoy, From India to the Planet Mars, causou grande celeuma quando surgiu e incendiou a imaginação viajante dos surrealistas.
Nela, ele apresentou as existências ancestrais e extraterrestres de sua médium, a quem apelidou de Hélène Smith, como sendo um trabalho da imaginação criativa subconsciente alimentada por criptomnésias.
Depois do sucesso do livro, Flournoy desistiu de sua médium, que se sentiu traída com isso; ela exigiu royalties e modificou seu nome para aquele que Flournoy lhe havia dado.
Os espiritualistas vieram em sua defesa. Em meio a esse cenário explosivo, surge uma jovem estudante americana: Frank Miller. Ela deu a ele um artigo seu, baseado em auto-observações, que defendia o trabalho dele contra os espiritualistas.
A introdução de Flournoy ao trabalho dela é elogiosa e contrasta claramente com a leitura que Jung fez sobre o “caso” dela. O que Flournoy particularmente valorizou nela foi a forma pela qual ela lindamente combinou uma sensibilidade que outros poderiam considerar mediúnica com a inteligência crítica e a habilidade para introspecção psicológica que tão tristemente faltam aos médiuns. Entretanto, ele não poderia evitar sonhar com ela na seguinte túnica sacrificial:
Como uma médium espiritualista, Miss Miller certamente seria a reencarnação de alguma princesa de antiguidade histórica ou pré-histórica… e ela não deixaria de nos fornecer revelações interessantes de sua pré-existência egípcia, assíria ou até asteca. Se fosse apenas uma questão do pitoresco, eu não poderia evitar lamentar que a firmeza de sua razão, contrabalançando a inclinação de seu temperamento, impediu que ela fosse destruída nas encostas poéticas da filosofia ocultista, e nos furtou um número significativo de romances subliminais!
Os temas dos artigos dela, como mostrarei posteriormente, relacionam-se com muitas das assinaturas estilísticas de Jung. Além disso, sua linha explanatória, a criptomnésia, era algo muito importante ao jovem Jung.
Uma das mudanças epistêmicas cruciais em Transformations and Symbols of the Libido foi um movimento mnemônico que ia da criptomnésia para a memória. Neste texto, Jung citou pela primeira vez o “Homem do Falo Solar” que, sem saber, estava representando um ritual mitraico. O Homem do Falo Solar, junto com outras figuras, carregava em seus ombros o peso e o fardo da prova do Inconsciente Coletivo. Neste exemplo, descartando o papel da criptomnésia, Jung argumentou que os traços, ecos, alusões e texturas míticos que se tecem através de nossas vidas, eram traços ou citações que não surgiam de nenhuma suposta origem dentro do período de vida de uma pessoa. Para acomodar a presença deles, Jung recorreu à noção de uma memória coletiva, ou memória. Portanto, a escolha que ele faz do artigo dela teve um significado mais que suplementar para seu estudo.
Ele continha não somente as alusões míticas que ele desejava restabelecer, como também o paradigma explanatório que ele desejava substituir.
Proponho as leituras dos artigos de Jung e Miller conjuntamente, ao invés de separá-los. Peço perdão aos meus leitores se ofendo os códigos convencionais da moda, invertendo as roupas de baixo com as de cima, e se minhas leituras parecem, francamente, trop décolleté (muito decotadas). Desejo chamar a atenção para certos franzidos e pregas no revestimento que fez a leitura dele do texto dela, os quais foram engomados e passados a ferro até hoje. Entretanto, ao reler o artigo dela para uma revisão da obra de Jung, deve-se estar atento para colocá-lo novamente à serviço da Psicologia Junguiana; tal movimento duplicaria o uso/usura de Jung do trabalho dela, mesmo no ato de desconstruí-lo.
Primeiramente discutirei seu papel como modelo para ele e os efeitos disso na audiência dele. No âmago de seu(s) texto(s) está uma reversão da ordem da mimese. Esta é uma característica que diferencia retoricamente os casos de Freud e Jung da literatura psiquiátrica anterior. Nesta última, os relatos de caso anatomizados distanciam os leitores de seus sujeitos. Nos casos paradigmáticos de Freud e Jung, entretanto, as alegações universais, junto com explicações que desafiam demarcações claras entre ‘normal’ e ‘patológico’, alteram consideravelmente os efeitos em seus leitores.
No início de seu(s) texto(s), Jung audaciosamente afirma que “desejava demonstrar o segredo individual dela como sendo universalmente válido”. Este é o primeiro lugar em que ele faz alegações universais em sua análise de um indivíduo. Ele pretende claramente mostrar que os complexos que ele revela na análise dela estão universalmente relacionados. Para muitos leitores, a questão da referencialidade do(s) texto(s) se transfere da hipótese de ser um retrato impecável de Frank Miller para a hipótese de ser um reflexo impressionante de nossas próprias vidas. E mais, através da grandiosa narrativa que oferece para equipar e vestir a vida de uma pessoa, o(s) texto(s) gera(m) as experiências que delineia(m). A história do movimento junguiano é em parte a história de como a imaginação de Jung sobre a vida de Frank Miller acabou sendo transformada para os outros na certeza pessoal da experiência revelatória e da iniciação.
No(s) texto(s) de Jung existe uma tensão entre a universalidade e a singularidade de sua análise. Isto é exemplificado pela mudança no subtítulo. O subtítulo de Jung de 1912 chama o texto de “A Contribution to the History of the Evolution of the Thought” (“Uma Contribuição à História da Evolução do Pensamento”). Seu subtítulo para a versão de 1952 chama-o de “A Study of the Prodromal Stages of a Case of Schizophrenia” (“Um Estudo dos Estágios Prodrômicos de um Caso de Esquizofrenia”). De modo significativo, o subtítulo revisado anuncia antecipadamente a etapa final do livro, a “esquizofrenia” de Frank Miller. Ele organiza a leitura do livro teleologicamente, o que duplica a leitura teleológica que Jung faz das suas fantasias como prevendo seu colapso.
Em seu trabalho posterior, Jung articula uma sutil e importante compreensão da exemplaridade, que é encontrada em The Psychology of the Transference [A Psicologia da Transferência] (CW 16). Neste texto, Jung novamente utiliza o motivo do fio de Ariadne para descrever seus exemplos que, neste caso, são as pranchas do Rosarium Philosophorum. No epílogo, ele afirma:
Estamos aqui no campo de singularidades incomparáveis, individuais. Até certo ponto, tal processo pode ser classificado com a ajuda de categorias amplamente concebidas e descritas através de analogias correspondentes, ou no mínimo aludidas a elas. Mas sua natureza mais profunda permanece sendo a singularidade individual de uma vida vivida, que ninguém compreende estando do lado de fora, na qual está envolvido aquele que a experiencia. A série de gravuras que nos serviu de fio de Ariadne é uma dentre muitas; isto é, poderíamos ter estabelecido vários paradigmas que teriam apresentado a transferência em outros caminhos diferentes. Mas nenhum paradigma único teria sido capaz de expressar completamente a multiplicidade infinita das variações individuais, que têm todas o direito de existir.
Isto sugere que se Jung tivesse escolhido outra pessoa que não Frank Miller como seu modelo, seu retrato sobre o segredo do indivíduo teria tido uma silhueta diferente. Além disso, Jung aqui crucialmente começa a mover a Psicologia para além dos limites fechados da paradigmicidade e arquetipologia para abri-la à infinidade do Outro.
O que havia em Frank Miller que a tornou o exemplo adequado a projetos teóricos tão distintos como os de Jung, Flournoy e o meu? É possível evitar definir exatamente o Outro em termos do padrão de alguém? Como pode-se escapar da violência ética dos sistemas psicológicos inaugurados a partir de fazer de um Outro um exemplo e da subsequente manufaturação disso na fabricação de casos? E como sair da clausura logocêntrica dos escritos históricos governados por um arché e um telos para comemorar a vida singular de Frank Miller?
Antes de podermos começar a descosturar a leitura de Jung do artigo de Frank Miller, o editorial da versão de 1952 precisa ser remodelado. O artigo dela foi publicado nos Archives de Psychologie de 1905, e não de 1906 como é dito. O prefácio editorial ao apêndice que contém seu artigo diz que, na introdução de Flournoy, ele “se refere ao material de Miller como uma ‘tradução’; fica evidente portanto que Miss Miller escreveu suas memórias em inglês, e estas foram traduzidas (por Flournoy?) para o francês”.
Seguindo esta suposição, a nota editorial afirma que “o original do memoir de Miller nunca foi publicado”.
Entretanto, a suposição de um “original” em inglês é baseada em um erro. Flournoy não fala do artigo dela como uma tradução. Além disso, James Harvey Hyslop, com quem ela também estudou, em sua introdução à publicação em inglês do artigo dela no Journal of the American Society for Psychical Research afirma que o artigo foi traduzido para a publicação por sua autora. A tradução do artigo dela no apêndice da versão de 1952, que não é feita por Richard Hull, é bem pobre. Por exemplo, na página 460, na última parte do lamento de Chiwantopel, a frase “J’ai conservé mon corps inviolé” é inexplicavelmente omitida. Dessa forma, eu me baseei na versão original do artigo dela e na sua própria tradução, de onde tirei todas as citações apresentadas.
Vamos agora ao artigo: “Some Instances of Subconscious Creative Imagination” (“Alguns Exemplos de Imaginação Criativa Subconsciente”). Ele é dividido em seções, que seguem uma certa construção dramática. A primeira parte exibe flashes da imaginação criativa. As duas seguintes caminham juntas exibindo o estilo de poemas oníricos vestidos para o dia e para a noite. A última encerra a coleção com um dramático design que combina elementos de inspiração asteca e indígena com o caleidoscópio da moderna vida das cidades.
Ela inicia a primeira parte com a nota: “Em alguns momentos, e por alguns instantes somente, as impressões de outros sugerem-se de modo tão vivo para mim que parecem ser minhas, embora assim que a sugestão passa, eu fico certa de não ser esse o caso”.
Quando outros expressam seu desgosto por caviar, que ela gosta muito, ela experimenta o desgosto ela mesma. Ela não gosta de certos tipos de perfume, mas quando uma dama usa eau de cologne e fala de seu poder e requinte, ela experimenta este prazer. Quando ela acompanha uma estória com interesse, ela tem a experiência de participar dela. Isso acontece especialmente nas peças de Sarah Bernhardt, Duse e Irving. Esta experiência é ressaltada em momentos onde “o papel da imaginação é acentuado”. Quando mostraram a ela uma fotografia de um navio, “a ilusão era de tocante beleza e poder – eu podia sentir a pulsação das máquinas, o rufar das ondas e o movimento do navio”.
O exemplo seguinte, escreve ela, “coloca a fantasia criativa totalmente em relevo”. Um dia, no banho, ela amarrou um pano em torno de seu cabelo, que tomou uma forma cônica. Por um momento parecia a ela “que eu estava num pedestal, uma verdadeira estátua egípcia, … membros rígidos, um pé na frente do outro, uma insígnia na mão. Isto foi realmente maravilhoso, e foi com muita pena que senti esta impressão se desfazendo como se desfaz um arco-íris”.
Esta parte se conclui com o seguinte episódio: um renomado artista desejava ilustrar suas publicações. Ela escreve que “consegui com sucesso fazer com que ele retratasse paisagens, como aquelas do Lago Leman, onde ele nunca tinha estado… e fiz com que ele desenhasse coisas que nunca vira… dei a ele o sentimento de um ambiente que nunca havia sentido”.
Jung começa sua leitura afirmando que: “Sabemos, a partir de muita experiência psicanalítica, que sempre que uma pessoa relata suas fantasias ou sonhos, ela lida não somente com o mais importante e íntimo de seus problemas, mas com o que é o mais doloroso naquele momento”. Os exemplos que ela cita, ele considera em bloco como retratando a libido espontaneamente tomando posse de certas impressões, o que se tornara possível pela falta de adaptação dela à realidade. Ele lê a epifania egípcia como a revelação de que ela queria ser tão rígida e tão feita de madeira como uma estátua egípcia. Jung vê o episódio com o artista como a expressão do efeito quase mágico dela sobre os outros. Ele afirma que a necessidade de enfatizar isso vem do fato de ela ser alguém que raramente teve sucesso em causar uma impressão emocional sobre os outros.
Jung parece não sentir nenhuma necessidade de justificar a estranha afirmativa com a qual ele começa, e isto dá o tom de como ele lerá o artigo dela – como um paciente em análise. Por meio desse uso figurativo, ele transforma as fantasias dela em problemas, e ignora completamente os tópicos de seu artigo e o sussurro de sua retórica. Parte do ganho deste movimento inicial era que ele lhe permitia se referir à sua própria problemática teórica e clínica como se procedesse na análise de um ‘paciente’. A durabilidade da análise de Frank Miller feita ‘sob medida’ por Jung pode ser vista nas análises de alguma forma pret-a-porter que esta continua a permear e a embasar. Os déficits dessa estratégia, juntamente com seu desgaste pelo uso ainda precisam de reflexão.
Os exemplos que ela cita estão todos relacionados com ‘aesthesis’ e servem para demonstrar a alteridade da imaginação. Dadas as dificuldades sempre citadas de Jung em relação à arte, sua leitura negativa desta seção não chega a ser uma surpresa. Enquanto os primeiros exemplos descrevem a receptividade dela ao advento de tais experiências, eles terminam com a descrição dela dando um treinamento em tal receptividade a outra pessoa. Em vista de suas conferências sobre trajes, pode se ver que tal receptividade era o segredo de sua arte, que permitia a outros serem transportados a lugares que jamais haviam visto, a épocas em que não haviam vivido, através da sua incorporação e transformação, totalmente convincentes, nos personagens que retratava.
A epifania da estátua egípcia também pode ser vista em termos de uma apreciação cultural da beleza das esculturas. O jornal New York World, para o qual ela contribuía, publicou uma reportagem de uma performance de Charlotte Sully, que havia recebido um prêmio por suas personificações de estátuas gregas.
As reportagens sobre as conferências de Frank Miller desmentem os comentários de Jung a respeito da dificuldade dela causar impressões emocionais em outras pessoas.
Dando uma olhada no estilo de leitura de Jung, percebemos que a posição do artista que se propôs a ilustrar as publicações dela é justamente o papel para o qual Jung foi atraído ao realizar sua ilustração analítica de seu artigo. Além disso, sua habilidade de viver impressões de outros como sendo suas, que ela transmite ao artista, é precisamente o que acontece a Jung, na medida em que ele é levado a se colocar no lugar dela e experimentar as experiências dela como sendo suas – o que, como ele conta no seminário de 1925, levou muitos anos para que ele se desse conta de que tinha acontecido.
A segunda parte do artigo dela começa com uma descrição de um cruzeiro marítimo que ela fez, de seu prazer em deixar para trás as cidades de Nova York, Estocolmo, Odessa e São Pitisburgo para se dirigir rumo ao sul e ser transportada pela glória do Bósforo e sentir sua alma vibrando no esplendor do passado ateniense. Ela escreve: “Permaneci por muitas horas sonhando sobre a ponte… a história, lendas e mitos dos diferentes países vistos à distância vieram a mim confusamente fundidos numa espécie de névoa luminosa, através da qual coisas concretas pareciam não mais existir, enquanto sonhos e ideias pareciam a única e verdadeira realidade”. Ela conta como escreveu uma canção de marinheiro para se encaixar na melodia de um oficial italiano por quem tinha muita simpatia.
Ela então descreve um sonho que teve, onde “uma ideia confusa envolvia a criação e corais poderosos que re-ecoavam através de todo o universo… misturados com coros de oratórios conduzidos pelas melhores sociedades musicais de Nova York, com vaga memória do Paraíso Perdido de Milton”. Depois, palavras surgiram do caos e formaram o seguinte poema:
Quando o Eterno criou o som,
Miríades de ouvidos surgiram para ouvir,
E através de todo Universo
Rolou um eco profundo e claro:
“Toda glória ao Deus do Som!”
Quando o Eterno criou a luz
Miríades de olhos surgiram para ver,
E ouvidos que ouviam e olhos que viam
Tornaram a entoar o imponente coral:
“Toda glória ao Deus da Luz!”
Quando o Eterno criou o amor,
Miríades de corações saltaram para a vida;
E ouvidos cheios de música, olhos cheios de luz;
Proclamaram com corações repletos de amor:
“Toda glória ao Deus do Amor!”
O que a tocou neste poema foi que, ao contrário da narrativa bíblica, na qual ela acreditava, ele coloca a criação da luz em segundo lugar, e não em primeiro. Ela lembra que Anaxágoras também faz o cosmo surgir a partir do caos através do vento revolto acompanhado de som; mas ela acrescenta que naquele tempo ela não conhecia nada sobre Anaxágoras ou sobre a doutrina de Leibniz do “dum Deus calculat fit mundus”. O sonho a faz lembrar do Livro de Jó, da Creation de Haydn, de um artigo sobre a Idéia criando o objeto, e dos sermões de seu pastor.
Jung vê este episódio como retratando uma introversão, o que na época para ele tinha uma conotação patológica. Ele tinha seus olhos especialmente voltados para o cantor. Jung afirma que ela desvaloriza e reprime a impressão erótica, que se transforma então em um hino religioso. Ele considera seu poema como uma afetação eticamente sem valor. Ele considera vazias suas tentativas de explicação. Ele vê o significado deste episódio como análogo aos seus casos de neurose, onde, no início, um sonho ocorria antecipando eventos posteriores. Ele afirma que isto marca para ela o início de um objetivo sublimado de vida.
Na sua passagem inicial, através do movimento em direção ao sul, à Grécia e Itália e do deleite estético ocasionado por isso, no meio do silêncio, do céu azul e das ondas, ela teve a epifania daquilo que Jung mais tarde articularia como esse in anima. Seria essa talvez uma das influências na ontologia madura de Jung?
A maioria das semelhanças que cita com relação a seu poema, ela sugere como sendo criptomnésias. Entretanto, crucialmente, quando chega a Leibniz e Anaxágoras, ela afirma não ter tido nenhum contato anterior com as idéias deles. Estes são exemplos que pré-modelam o corte das figuras exemplares de Jung, como o Home do Falo Solar. Além disso, a aparição espontânea de ideias arquetípicas contrárias às noções bíblicas comuns que ela descreve aqui, era um tema chave da psicologia da religião e da prática em psicoterapia de Jung.
A terceira parte de seu artigo apresenta um poema chamado “The Moth to the Sun” (“A Mariposa em direção ao Sol”), que surge a ela num estado de semisonho. O poema é este:
Ansiei por ti quando primeiro rastejei para a consciência,
Meus sonhos todos tratavam de ti quando na crisálida eu dormia.
Miríades de minha espécie esgotaram suas vidas
Contra uma tênue centelha vinda de ti.
Só uma hora mais – e minha pobre vida se esvai;
Mas meu último esforço, como o meu primeiro desejo, será
Apenas de tua glória aproximar-me; depois, tendo obtido
Um vislumbre encantado, eu morrerei contente,
Pois eu, a fonte da beleza, calor e vida
Em seu esplendor perfeito, uma vez olhei!
O poema causou grande impacto sobre ela, que traçou semelhanças com um artigo que havia lido comparando a busca do homem por Deus com aquela da Mariposa pela estrela, uma peça que havia assistido de nome “The Moth and the Flame” (“A Mariposa e a Chama”), e o ritmo e sentimento das duas últimas linhas com um poema de Byron.
Comparando este poema crepuscular com seus poemas diurnos e com o poema anterior, noturno, ela conclui que eles formavam uma série natural, o que remove as suspeitas de qualquer “intervenção oculta”, que outros teriam associado ao poema noturno.
Jung inicia sua leitura desta parte registrando que ela não diz nada a respeito do intervalo de tempo entre os eventos que relata. Ele conclui a partir disso que nada de importante teria acontecido neste meio tempo e que o poema está relacionado com o mesmo complexo anterior. Ele leu o poema dela desta forma: “Devemos esperar que uma mariposa realmente se dirija ao sol? Conhecemos o provérbio sobre uma mariposa que voou para a luz e chamuscou suas asas, mas não a lenda da mariposa que esforçou-se para alcançar o sol. Aqui duas coisas que não se ajustam conjuntamente estão conectadas no pensamento dela”. Ele então compara o desejo da mariposa ao desejo de Fausto. Ele vê a mariposa como a própria Frank Miller. Colocando em forma de narrativa os casos separados, ele vê o poema retratando um ato de auto-assassinato, seguido da renúncia do desejo erótico pelo marinheiro italiano.
A obra de Jung nessa época avançou significativamente a concepção de temporalidade da psicanálise. Todavia, ao manter a noção de um complexo central, ele continua a encobrir os intervalos temporais do artigo dela. As camadas, alusões e ênfases são características dos designs retóricos dela, que dificilmente revelam a nudez de sua vida. Ao ler o tecido dos textos dela como sendo completo e transparente, Jung reprime sua escrita. Esta anulação forma o impensável do texto dele e aparece de forma mais aguda nos pontos da narrativa dela que ameaçam a estrutura do argumento dele. Ele subordina aquilo que está velado àquilo que não está, de forma que o que está presente é considerado o total sem saldos. Isso permite a ele levar a sério a noção de que a análise pessoal foi incapaz de ensinar a Katzenellenbogen “nenhum tiquinho a mais” a respeito de Frank Miller. Na versão de 1952, o destino posterior dela é simplesmente atrelado à costura final da análise dele, e lido como pertencendo ao mesmo complexo uniforme. Isto ignora qualquer evento significativo que possa ter acontecido posteriormente, de modo que o destino dela é totalmente explicado com antecedência.
Enquanto que uma das intenções dela ao citar este poema é a de expor a falácia espiritualista dos médiuns, Jung, na leitura do poema, cai em uma falácia naturalística. James Hillman descreve isto como o “hábito psicológico de comparar eventos da fantasia com eventos similares da natureza”. Aqui, felizmente, temos outra leitura do poema dela, por ninguém menos que Gaston Bachelard, em seu livro The Flame of a Candle (A Chama de uma Vela).
A leitura de Bachelard do poema dela aparece no capítulo chamado “The Solitude of Candle Dreaming”. Ele escreve que “para um sonhador que sonha alto, quanto mais simples o incidente, mais extensos são os comentários. C. G. Jung escreveu um capítulo inteiro para demonstrar esse drama…”. Comentando o poema dela, ele escreve que “aqui outra vez, a poesia dá a uma ocorrência insignificante o significado de um destino. O poema aumenta tudo, é em direção ao sol, a chama das chamas, que o ser minúsculo, por longo tempo enrolado em sua crisálida, busca o sacrifício supremo, o glorioso sacrifício”. Comentando a comparação que Jung fez do poema dela com o poema de Goethe, Bachelard escreve que “não hesitamos em seguir Jung nesta reaproximação que ele faz entre o poema de sua esquizofrênica e o poema de Goethe, porque auxiliamos esse crescimento da imagem que é um dos dinamismos mais constantes do devaneio literário. Para nós ele é um testemunho da dignidade psicológica do devaneio escrito”. Bachelard completa seu comentário comparando o poema dela ao Divan de Goethe.
Nestas passagens, Bachelard foi o primeiro a reabilitar Frank Miller como poetiza. Além disso, se seguirmos a leitura feita por ele das amplificações de Jung (que a essa altura seriam mais corretamente chamadas de associações livres mitológicas), podemos reavaliar a grandeza da análise de Frank Miller feita por Jung. Podemos vê-la menos nas especificidades de sua interpretação, do que na dignidade, peso e seriedade que Jung atribuiu à Psique.
É importante notar que o seu modo de amplificação tem seu ponto de partida no próprio procedimento dela, que ele cita como justificativa. Muitos dos temas míticos que ele analisou extensivamente, formam não mais que a bainha do texto dela, e ele chega a reverenciar sua erudição algumas vezes. Entretanto, enquanto as comparações míticas de Jung formam pregas volumosas, as de Frank Miller são sempre estreitas.
A seção final, a pièce de résistance de sua coleção, começa retratando seu humor receptivo e devoto uma tarde. Imagens começaram a surgir, tais como espirais inflamadas, e uma esfinge num cenário egípcio. Daí um poderoso drama se desenrola, próximo a uma cidade de sonhos, estrelado por uma figura asteca de nome Chiwantopel.
Enquanto Chiwantopel surge de uma floresta, um índio com pele de cervo se aproxima, preparando-se para lançar uma flecha contra ele. Mas Chiwantopel expõe seu peito desafiadoramente e o índio se afasta.
Chiwantopel começa a falar, contando sobre suas andanças desde que deixou o palácio de seu pai, indo atrás de um louco desejo de encontrar “ela que irá compreender”. Ele revê as mulheres que já conhecia – Chi-ta, Ta-nam e Ka-ma – e lamenta: “Ninguém que me entende, não há nenhuma parecida comigo, nenhuma alma gêmea à minha”.
Ele imagina se haverá algum dia alguém que conhecerá sua alma e exclama:
Sim! Mas dez mil luas nascerão e minguarão antes que nasça sua alma pura. E de um outro mundo virão seus pais a este aqui. O sofrimento a acompanhará: ela também procurará e não encontrará quem a compreenda… Em seus sonhos eu virei a ela, e ela compreenderá. Conservei meu corpo inviolado. Eu vim dez mil luas antes dela e ela virá dez mil luas tarde demais. Mas ela compreenderá. É só uma vez a cada dez mil luas que nasce uma alma como a dela!
Uma víbora aparece, ataca-o e a seu cavalo, que morre. Ele presta as últimas homenagens ao cavalo e agradece à serpente por ter posto um fim à sua peregrinação. Acontece um terremoto e Chiwantopel grita quando seu corpo é tragado: “Eu tenho preservado meu corpo inviolado. Ah! Mas ela entenderá! Ja-niwa-ma, Ja-ni-wa-ma, tu entenderás”.
Ela inicia seus comentários sugerindo que a fantasia poderia talvez ser transformada em um melodrama de um ato. Ela encontra possíveis fontes para seu romance na história dos incas e Pizarro no Peru, em roupas indígenas, em Julio Cesar de Shakespeare, nas partidas de Buda e Rasselas, no desejo de Sigfried por Brunhilde, em uma palestra sobre “The Inviolate Personality” e na paisagem do Vesúvio – esboçando desta forma conjuntamente sua cidade dos sonhos, a cidade do Imaginal e a vida efervescente de Nova York. Ela conclui com a esperança de que suas observações possam ajudar outros que também estejam confusos sobre casos similares e que possam contribuir para elucidar o fenômeno mediúnico.
Jung lê suas descrições iniciais como indicando uma tendência a desdenhar de soluções reais e preferir substitutos fantásticos. Ele toma o cenário antigo como indicador da natureza infantil da fantasia; ele vê Chiwantopel relacionado ao ânus, lendo sua origem como um nascimento pela via anal. Ele vê Chiwantopel como sendo a personalidade infantil dela, ainda incapaz de compreender que devemos nos separar de mãe e pai. Ja-ni-wa-ma, a alma-irmã que Chiwantopel deseja encontrar, ele vê como uma corrupção da “Mama”. Jung continua a leitura da fantasia dela prospectivamente, aos moldes do automatismo teleológico de Flournoy, como apontado por John Kerr. Jung vê a fantasia como uma mensagem a Frank Miller, implorando para que ela desista de seu infantilismo. Ele afirma que isso não chama a atenção dela. John Kerr nota que, ao retratar o “triunfo regressivo dos desejos incestuosos dela” por sua mãe, Jung estava de fato prevendo o ataque de insanidade. Isto posto, vemos como a notícia de Katzenellenbogen teria chegado a Jung como uma defesa de seu livro.
Jung também estava predisposto a escutá-la como um caso de Esquizofrenia, já que as pesquisas que culminaram em Transformations and Symbols of the Libido estavam lidando fundamentalmente com a relação entre esquizofrenia e mitologia. No seu protótipo de 1912, a presença do material arcaico ou mitológico por si só foi suficiente para indicar aquela condição. Na época em que ele veio a remodelar o texto, sua visão tinha se alterado. A patologia dependia agora da atitude da consciência em relação a tais fenômenos. Esta alteração acarretou retoricamente uma leitura diferente do suposto colapso dela. Muitas passagens curiosamente depreciativas foram costuradas à edição de 1952, onde Jung verdadeiramente dá a ela uma severa reprimenda. Ela é vista como não tendo “nenhuma ideia do que estava acontecendo”. A participação dela no drama de Chiwantopel é vista como “sem nenhum significado ético”. Ela é descrita como emocionalmente ingênua e possuidora de um “estreito horizonte moral”. A passagem seguinte é significativa. Jung escreve: “Dificilmente deve-se supor que Miss Miller, que evidentemente não possuía a menor ideia do significado real de suas visões – que até Theodore Flournoy, apesar de sua sensibilidade acurada para valores, não pode fazer nada para explicar – seria capaz de encarar a próxima fase do processo, isto é, a assimilação do herói por sua personalidade consciente, com a atitude correta”. Estando impossibilitada de compreender suas visões, ela evidentemente estava em ilustre companhia. (Flournoy tentou, no entanto, explicar suas visões na introdução que fez a seu artigo.)
A análise de Frank Miller feita por Jung foi a primeira mostra do seu conceito de teleologia, particularmente em sua aplicação a um caso individual. O método construtivo, ele argumentava na época, proporciona uma saída para as limitações das interpretações redutivas e causais. Este foi um de seus grandes avanços. Entretanto, ao literalizar o telos num prognóstico clínico, como ele faz em sua leitura do drama de Chiwantopel, e ao especificar as relações entre eventos futuros e fantasias de modo tão inequívoco quanto os modelos dos quais pretende escapar, a alteridade do futuro como imprevisível e desconhecido é excluída. O súbito e o espontâneo são incluídos na costura do conhecido.
Toda a segunda parte do(s) texto(s) de Jung, que às vezes ele dizia ter sido responsável pela quebra final de sua relação com Freud, era dedicada à explicação do drama de Chiwantopel. Talvez não seja arbitrário que esta tenha sido a primeira explicação de Jung de uma imaginação ativa. Nas pesquisas de Frank Miller sobre o imaginal, via imaginação ativa, teria ela atuado no papel de anima inspiratrice para Jung, naquilo que ele chamava ser seu confronto com o inconsciente?
As descrições de Jung sobre a imaginação ativa são geralmente seguidas por alertas a respeito dos perigos da psicose, particularmente em casos de esquizofrenia latente. Isto reflete sua leitura da imaginação ativa dela e sua descrição de seu suposto colapso esquizofrênico. Na versão de 1912, o início da fantasia dela é visto como demarcando uma perigosa introversão. Na versão de 1952, a cobra verde que aparece é vista retrospectivamente como significando sua psicose latente. Olhando para esse conjunto, ele sugere que a oscilação e compreensão das leituras dele sobre as fantasias dela pertencem a seu método retórico de instrução, ao invés de terem um referencial importante no destino dela. A esquizofrenia, na versão de 1952, é uma figura de linguagem retórica, servindo para mostrar o destino e a fatalidade da relação de alguém com o imaginal.
A introdução de Jung ao(s) texto(s) começa pela descrição da profunda impressão causada sobre qualquer um que possa ler apropriadamente a passagem de The Interpretation of Dreams (A Interpretação dos Sonhos) onde Freud mostra que a fantasia do incesto está na raiz da lenda de Édipo. Para Jung, este insight abre não somente a possibilidade de um entendimento da antiguidade; ele também oferece um ponto de referência para entender nossa própria cultura. A visão de Jung da mútua iluminação da antiguidade e da modernidade faz paralelo com o drama de Chiwantopel e Janiwama, sonhando um com o outro através dos séculos e finalmente encontrando a compreensão um no outro. O livro todo de Jung elabora mimeticamente esta fantasia. Além disso, a visão de Jung da rediviva do mundo antigo também espelha algumas reações contemporâneas às conferências dela. Como citado anteriormente, Botassi pensava estar vendo uma das cariátides da Acrópole surgir. Naquele tempo, para Jung, a esquizofrenia consistia no afrouxamento das camadas históricas do inconsciente; este afrouxamento é uma das maneiras de ver o que Frank Miller fazia em suas performances, embora de um modo bastante diferente de uma regressão esquizofrênica. Pode-se imaginar que brilho teriam acrescentado aos trabalhos de Jung se ele pudesse tê-las assistido.
Finalmente, ao escrever seus estudos em torno de um conjunto de sonhos, fantasias e imaginações ativas, em vez de em torno de anamneses da infância, ela forneceu a Jung uma antevisão daquilo que se tornou seu estilo predominante de material de caso, até na sua autobiografia. Assim, embora eu tenha mostrado que o artigo dela foi negligenciado no texto dele, ele não deixou de ter efeitos significativos na forma como Jung elaborou sua obra.
No final de seu artigo, Frank Miller afirma que por algum tempo andou a procura de uma idéia original. Não sei se ela a encontrou, ou onde suas pesquisas imaginais a levaram. Talvez ela tenha lido a análise que Jung fez a seu respeito, o que, em vista do meio em que ela circulava, é muito provável. Espero pelo menos ter tirado o espartilho da imaginação, de modo que ela possa especular a respeito desses e de outros temas.
Nesse momento, ela deixa de lado o manto de meu comentário — e deixa-nos também sem conhecer o farfalhar do traje de seu moira-moire.
Mas somos deixados
com o balançar sedoso
de sua memoire.
Tradução: Letícia Capriotti
Revisão: Gustavo Barcellos